Acórdão nº 719/16.4T9PRT.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 26 de Abril de 2017

Magistrado ResponsávelMARIA ERMELINDA CARNEIRO
Data da Resolução26 de Abril de 2017
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo nº. 719/16.4T9PRT.P1 Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:I - RelatórioNos autos de instrução supra referenciados que correm termos no Tribunal da Comarca do Porto – Instância Central – 1ª Secção Instrução Criminal – J3, por decisão instrutória proferida em 28/09/2016, foi o arguido, B… não pronunciado pela prática dos factos descritos na acusação pública que, contra o mesmo, havia sido deduzida.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Ministério Público, rematando a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):«CONCLUSÕES:1º O Ministério Público, realizadas as diligências de inquérito reputadas por necessárias à descoberta da verdade, e no pressuposto da existência de indícios suficientes, veio deduzir acusação contra o arguido B… pela prática de factos suscetíveis de integrarem um crime de natureza estritamente militar, de Abandono de Posto, p. e p. pelo art.º 66º, n.º 1, LI. e) do Código de Justiça Militar.

  1. Inconformado, veio o arguido requerer a abertura da instrução, invocando, a nulidade da acusação, por dela não constar o elemento subjetivo (dolo) e, entre outros motivos, por não ter atuado com intenção de praticar o crime de que vem acusado, já que, ao sair do seu posto, 10 minutos antes do términus do serviço, o fez por ter recebido uma chamada telefónica da sua filha, estudante e trabalhadora da C… em …, que dista de Coimbra 13Km, informando-o que tinha perdido o último autocarro, encontrando-se fortemente abalada e com medo, por estar sozinha num local isolado e frequentado, por vezes, por marginais.

  2. Porque não foi requerida qualquer diligência de prova foi de imediato designado o debate instrutório e, posteriormente, proferida decisão instrutória, na qual a Mª JIC, considerando existir motivo legítimo para que o arguido se ausentasse do seu posto de trabalho, 10 minutos antes do termo do seu turno de serviço, em virtude de ter ido prestar auxílio à sua filha de 19 anos, que se encontrava sozinha, à noite, numa paragem de autocarro, onde não iriam chegar outros autocarros (por ter perdido o último), à mercê de quaisquer marginais que por ali deambulassem, decidiu não pronunciar o arguido.

  3. É desta decisão que se recorre, por não se estar de acordo que o motivo invocado pelo arguido para abandonar o seu posto de trabalho, ainda que apenas 10 minutos antes de o seu turno terminar, seja uma causa justificativa (motivo legítimo), que possa excluir a ilicitude e/ou a culpa dos factos por ele praticados - de abandono do seu posto.

  4. Com efeito, e pese embora se concorde com o referido pela M. mº JIC, na parte em que refere que as causas de justificação previstas nos artigos 31º a 39º do Código Penal são aplicáveis aos factos puníveis pelo direito penal militar, por força do disposto nos artigos, 8º do Código Penal e 2º do Código de Justiça Militar, tal só acontece se não existir disposição legal em contrário ou se não for contrariado pelas normas especiais previstas do Código de Justiça Militar que, por serem especiais, derrogam as normas gerais contidas no Código Penal.

  5. Ora, no que concerne ao Código de Justiça Militar, dispõe o artigo 13º que "o perigo iminente de um mal igual ou maior não exclui a responsabilidade do militar que pratica o facto ilícito, quando este consista na violação de dever militar cuja natureza exija que suporte o perigo que lhe é inerente".

  6. Ou seja, por força desta norma legal, que é especial em relação às do Código Penal, tem determinadas circunstâncias as causas de exclusão da ilicitude - direito de necessidade - e de exclusão da culpa - estado de necessidade desculpante - previstas, respetivamente, nos artigos 34º e 35º do Código Penal são afastadas no âmbito do direito penal militar.

  7. Assim, de acordo com o disposto no artigo 34º do Código Penal “não é lícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo atual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro" quando, entre outros requisitos, houver "sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado".

  8. E, por força do disposto no artigo 35º, n. 21 do Código Penal "age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo atual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do aqente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente".

  9. Ora, a norma do Código de Justiça Militar a que vimos fazendo alusão, contida no artigo 13º, determina que, ainda que se verifique o perigo de um mal maior, o militar tem que suportar esse perigo, sob pena de, se o não fizer - sacrificando o interesse subjacente ao dever militar que lhe é imposto para salvaguardar um interesse seu ou de terceiro, ainda que juridicamente protegido, de valor superior ao interesse sacrificado - se considerar que pratica o facto ilícito e culposo, não podendo ver excluída a sua responsabilidade penal, ainda que se verifiquem todos os requisitos previstos no artigo 34º do Código Penal.

  10. Por força da mesma norma, se a situação de perigo que o militar enfrenta ameaça interesses de igual valor àqueles que estão subjacentes ao dever militar que lhe é imposto (perigo de um mal igual) - e o militar cede perante esse perigo, sacrificando o interesse militar para salvaguardar um interesse seu ou de terceiro -, a sua ação será sempre ilícita à luz do disposto no artigo 34º do Código Penal, uma vez que a causa de exclusão da ilicitude só funciona, no direito penal militar, quando o interesse a sacrificar é superior.

  11. Já no que se reportam ao "... perigo iminente de um mal igual", referido no citado artigo 13º do C.JM, pretendeu o legislador afastar a causa de exclusão da culpa prevista no artigo 35!l' do Código Penal que, na falta de disposição legal em contrário (ou seja, na falta desta disposição), teria aplicação direta no âmbito do direito penal militar.

  12. Estas limitações à aplicação direta das normas do Código Penal que contêm as causas de justificação da ilicitude ou da culpa ao direito penal militar compreendem-se dentro de uma filosofia muito própria num ramo de direito muito específico, em relação ao qual o legislador entendeu que não se satisfaz no quadro do direito penal comum, quer por causa do tipo de bens cuja proteção está em causa (tutela bens jurídh:os militares), quer por causa das especiais exigências de celeridade deste ramo de direito (todos os processos são urgentes).

  13. E foi por isso que o legislador incluiu, em alguns tipos de crime, expressões como "sem causa justificada" ou "sem motivo legítimo" (como acontece no crime de abandono de posto p. e p. pelo artigo 66º, n.º 1 do Código de Justiça Militar), que não constituem elementos (negativos) dos tipos de crime, mas que visam a aplicação direta das causas de justificação ou de exclusão de responsabilidade criminal previstas no direito penal comum, que de outro modo não o poderiam ser, em face do que dispõe o artigo 13º do Código de Justiça Militar.

  14. De onde resulta que a norma prevista no artigo 13º do Código de Justiça Militar não é aplicável à violação de todos e quaisquer deveres militares para salvaguarda de interesse, igualou superior, juridicamente protegido, do agente ou de terceiro.

  15. Existem deveres militares que, pela sua natureza, não exigem que o militar suporte o perigo de mal igual ou maior que lhe é inerente. A estes casos aplica-se, diretamente, o regime penal geral, de exclusão da ilicitude e da culpa, contido nos artigos 31º a 39º do Código Penal, como acontece no caso em apreço, em que está em causa a prática de um crime de abandono de posto.

  16. Aqui chegados cumpre perguntar se nos autos se encontra comprovado o "motivo legítimo" invocado pelo arguido e, em caso positivo, se o mesmo se pode considerar desculpante da sua atuação típica e ilícita, de abandono de posto 10 minutos antes do termo do turno de serviço, isto à luz do disposto no artigo 359 do Código Penal, invocado pela M. mº JIC para a não pronúncia do arguido.

  17. Ora, compulsados autos, verifica-se que, não só não se encontra comprovado nos autos que o abandono do posto por parte do arguido, ainda que 10 minutos antes do termo do turno de serviço, se verificou por um "motivo legítimo", como o motivo invocado pelo arguido não se pode enquadrar no "estado de necessidade desculpante" nos termos do que vem previsto no artigo 35º do Código Penal.

  18. Com efeito, o motivo invocado pelo arguido para abandono do seu posto foi, como resulta do teor do seu interrogatório - fls. 63 e verso - "para ir buscar a sua filha que estava na paragem do autocarro", tendo ainda afirmado que "não solicitou autorização superior" para esse efeito, embora tivesse comunicado ao militar que estava de serviço ao atendimento no Posto de … e ao Cabo-Mor E…, que iria rendê-lo no serviço, o que este último não chegou a confirmar ter ocorrido antes das 24H00 do dia 18 de dezembro (hora a que terminava o turno de serviço) - cf. fls.79).

  19. Nunca o arguido referiu, nem resultou apurado de quaisquer diligências que foram efetuadas em inquérito, que abandonou o posto para ir buscar a sua filha de 19 anos, que saíra às 22H00 do seu local de trabalho - o estabelecimento C…, sito em … - ,que lhe havia telefonado, informando-o que tinha perdido o último autocarro, que se encontrava sozinha na paragem, em Taveiro, a 13Km de distância de Coimbra, sendo tal local isolado e frequentado, por vezes, por marginais e, por isso, estava com medo.

  20. O arguido apenas vem invocar este motivo, com as circunstâncias supra referidas, no seu RAI, mas não fez qualquer prova que abandonou o posto por aquele motivo e naquelas circunstâncias, já que não requereu qualquer tipo de prova, nem mesmo o seu novo interrogatório.

  21. Como, também, não invocou o arguido no RAI a aludida causa de exclusão da culpa ou qualquer outra (ao contrário do que refere a...

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