Acórdão nº 859/14.4T9MTS.P2 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 10 de Janeiro de 2018

Magistrado ResponsávelMARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Data da Resolução10 de Janeiro de 2018
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Rec. Penal n.º 859/14.4T9MTS.P2 Comarca do Porto.

Instância Local de Matosinhos.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I - Relatório.

No Processo Comum Singular nº 859/14.4T9MTS da secção criminal, juiz 1, da Instância Local de Matosinhos, foi submetido a julgamento o arguido B…, melhor identificado na sentença a fls. 321.

Os presentes autos após prolação da sentença de 07.03.2016 subiram a este Tribunal, onde foi proferido acórdão datado de 12 de Outubro de 2016 neste TRP onde se determinou «…declarar nula a sentença recorrida, por inobservância do disposto nos artigos 374º, nº 2 358º, n.º1 do C.P.P., a qual deverá ser reformulada pelo mesmo Tribunal, de forma a suprir o apontado vício de falta de fundamentação, na vertente de falta de apreciação crítica, devendo ainda, o mesmo tribunal proceder à comunicação ao arguido da supra mencionada alteração não substancial de factos [para o que necessariamente procederá à reabertura da audiência e consequente nova leitura da sentença]».

Após reabertura da audiência e efectuadas as diligências que o tribunal teve por convenientes foi proferida nova sentença datada de 15 de maio de 2017, depositada no mesmo dia, com o seguinte dispositivo: «Por todo o exposto, decide-se:I.

  1. Condenar o arguido B… da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. art. 11.º, n.º 1, a), do Dec. Lei n.º 454/91, de 28.12, na redacção do Dec. Lei 316/97, de 19.11, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa; 2.Condenar o arguido B… da prática de um crime de burla, p.p. pelo art. 217.º do Código Penal na pena de 200 (duzentos) dias de multa; 3.Condenar o arguido B… pela prática dos dois crimes em concurso na pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis) euros, no montante global de 1.680,00 (mil seiscentos e oitenta euros); 4.Condenar o arguido nas custas do processo com taxa de justiça que se fixa em 2 Ucs.

    II.

    Julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante e, em consequência, condenar o demandado B… a pagar-lhe a quantia de €3.224,12 (três mil duzentos e vinte e quatro euros e doze cêntimos), acrescida de juros desde a data da notificação para contestar e até efectivo e integral pagamento.

    Custas pelo demandado.

    (…)»*Inconformado, o arguido interpôs recurso, conforme motivação de fls. 339 a 350 que terminou com as seguintes conclusões: «a).O arguido considera que não cometeu o crime de burla pelo qual foi condenado; b). O arguido considera que não foi suficientemente provado tal crime e que deve beneficiar da presunção de inocência; c). Por isso, entende que deve ser alterada a sentença no que concerne à matéria de facto dada por provada eliminando-se da mesma o seguinte: "Ao apor no primeiro cheque a data do dia seguinte, o arguido agiu com intenção de ludibriar a queixosa, assegurando-lhe que realizaria a primeira e segunda vendas, assim conseguindo que lhe fosse entregue o peixe relativo a cada uma delas antes de devolvido o primeiro cheque por falta de provisão" e "C… Lda, foi inibida do uso dos cheques desde 07/07/2014, tendo sido devidamente comunicada ao arguido tal inibição por carta datada de 08/07/2014, enviada pelo D…" antes fora dito " ... nunca foi intenção do arguido pagar o peixe que adquiriu à assistente, sendo que apenas quis criar um artificial contexto em ordem a determiná-la a vender-lhe aquele peixe causando-lhe um prejuízo patrimonial…".

    1. Assim o exigem os depoimentos do arguido, da legal representante da ofendida e da testemunha K… e a cópia da carta junta aos autos pelo D… que nenhuma prova faz quanto à notificação ao arguido; e) Mesmo que assim não seja e sem conceder, a sentença mostra-se deficientemente fundamentada quanto à apreciação crítica da prova em lado algum se justificando a matéria dada por provada na conclusão anterior já que foi, sem qualquer prova, dado o arguido por notificado da inibição do uso do cheque e foi desatendido o seu depoimento e das demais testemunhas incluindo a legal representante da ofendida.

    2. Para o preenchimento do crime de burla, não basta que alguém seja enganado e determinado a sofrer ou a provocar em terceiro um prejuízo, mas exige-se um mais, ou seja, que esse erro ou engano seja provocado no visado de forma astuciosa, ou seja, como se disse no Ac. RP de 10.05.2006, proc. 0416676, em www.dgsi.pt..

      " ... que haja habilidade para enganar, subtileza para defraudar, engenho para criar a aparência de uma realidade que não existe ou para falsear a realidade.

    3. No caso dos autos, a sentença associa a convicção errónea da ofendida no sentido da provisão do cheque e da sua regularidade - ou seja, no sentido de que iria receber o valor titulado no cheque na data do seu vencimento - apenas à entrega de um cheque pós-datado, sem que relate qualquer outra conduta do arguido, astuciosa ou não, no sentido de convencer a ofendida naquele sentido a não ser a ideia de que sem a 2ª compra de peixe, decorridos 2 dias a vendedora não teria vendido o peixe, tese que é contrariada pela sua legal representante que declarou aceitar cheques pós-datados.

    4. Declarando a ofendida que aceita cheques pós-datados a alteração se fosse intencional da data do 1º cheque para não ser detetada a tempo a sua falta de provisão conduziria a final que o crime de burla se verificaria na 2ª compra e não na primeira .... Já que a primeira sempre o arguido alcançaria com ou sem cheque pós-datado.

    5. O arguido não devia ter sido condenado pelo crime de burla mas apenas por um crime de emissão de cheque sem provisão ou quanto muito deveria ter sido condenado por um crime continuado de emissão de cheque sem provisão.

      1. Devendo, correspondentemente ser reduzida a condenação no pedido civil.

      2. Considerando os escassos factos provados sobre as concretas circunstâncias da prática dos crimes, a ausência de quaisquer alusões ou considerações quer aos sentimentos manifestados no seu cometimento e os fins ou motivos que o determinaram - quer sobre a conduta anterior e posterior à prática dos factos, quer sobre a personalidade do agente, a sua integração social, as suas condições pessoais, nomeadamente familiares - deverão pender a favor do arguido.

        l)Acresce que nenhuma prova foi feita da inibição de uso dos cheques por parte da sociedade C… Lda. ou por parte do arguido e nenhuma prova foi produzida de que tivesse sido comunicado à sociedade ou ao arguido pelo D… tal como, aliás, resulta dos factos dados por não provados, sendo que estes factos dados por não provados na sente-a em nada foram tidos em conta na decisão e fundamentação.

        m). Foram, assim, violados os artigos 71º a 73º e 217º-1 do Código Penal e 374º e 375º do CPP.

        Termina pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que se coadune com a pretensão exposta sendo o arguido absolvido do crime de burla.»*Admitido o recurso, conforme fls. 352 dos autos, veio o MP junto do tribunal a quo, apresentar a sua resposta conforme fls. 357 a 363, sem formular conclusões, mas pugnando fundamentadamente pela negação de provimento ao recurso.

        *Também a assistente E… ofereceu resposta ao recurso do arguido, conforme fls. 366 a 376 dos autos, rematando a mesma com as seguintes conclusões: «A. O recurso interposto pelo arguido não tem qualquer fundamento de facto ou de direito, afigurando-se a sentença inteiramente correcta e justa tendo em conta os factos provados e o direito aplicável.

      3. No quadro factual provado é manifesto que o arguido agiu com intenção de obter para si ou para a sociedade que representava enriquecimento ilícito, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou na assistente aquando da entrega do primeiro cheque, determinando-a a praticar actos que lhe causaram (a ela assistente) prejuízo patrimonial, cometendo por isso um crime de burla p. p. 217º do CP.

      4. Para além desse, o arguido praticou também um crime de emissão de cheque sem provisão p. p. pelo artigo 11º, 1, a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, ao emitir e entregar à assistente o segundo cheque.

        Termina pedindo que o recurso interposto seja julgado totalmente improcedente e, por isso, mantida na íntegra a sentença recorrida.»*Nesta Relação, o Excelentíssimo PGA emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso, referindo que se lhe afiguram sanados pelo tribunal a quo os vícios apontados no anterior acórdão do TRP «quer na fundamentação da nova sentença após as diligências para apuramento de determinado facto (comunicação bancária da inibição do uso de cheques ao arguido) e que foi levado à factualidade não provada, quer previamente, na acta de audiência de 19 de Dezembro de 2016 – cfr. fls. 269/270».

        Cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta.

        Colhidos os vistos, realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

        * II- Fundamentação.

        Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

  2. -Questões a decidir:Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir: - Violação do artigo 374º, n.º2, do CPP por falta de apreciação crítica.

    - Impugnação da matéria de facto.

    - Qualificação jurídica dos factos que respeitam ao crime de burla.

    * 2. Factualidade.

    Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados, e respectiva motivação.

    Factos provados.

    A assistente E…, Lda., NUIPC ………, é uma sociedade comercial por quotas que exerce a actividade de comércio de pescado.

    O arguido é gerente da sociedade comercial por quotas C…, Lda., com sede na Rua …, NUIPC ………, que tem por objecto o comércio, importação, exportação e distribuição de peixe, moluscos e crustáceos.

    No dia 05.08.2014, o arguido, até à data desconhecido da...

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