Acórdão nº 3721/11.9TBLRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 18 de Março de 2014

Magistrado ResponsávelHENRIQUE ANTUNES
Data da Resolução18 de Março de 2014
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: 1.

Relatório.

A… e cônjuge, C…, pediram em acção declarativa com processo comum sumário pelo valor, cuja petição foi apresentada por via electrónica no dia 27 der Junho de 2011, ao Sr. Juiz de Direito do 4º Juízo Cível da Comarca de Leiria, que condenasse R…, SA: a) A reconhecer que o prédio dos AA., identificado no artº 1º da petição, goza de uma servidão de passagem sobre o prédio da Ré, servidão essa com as características (início, configuração, largura, comprimento, trajecto e traçado) referidas nos artºs 9º, 10º, 15º e 18º da presente petição; b) A retirar do leito dessa servidão o silo que aí construiu e a restitui-la ao estado anterior à construção do referido silo; c) A retirar a rede de vedação, numa largura de 3 metros, implantada nessa servidão de passagem na parte em que o prédio da Ré confronta com o prédio dos AA e em que o caminho, em que se consubstancia tal servidão, inicia o atravessamento do prédio dos AA até à antiga Mata Nacional, onde actualmente se encontra instalada a Z…; d) A deixar integralmente livre, desimpedida e desobstruída toda a referida servidão de passagem, desde o seu início, na Rua … até ao prédio dos AA, dali retirando tudo, designadamente o referido silo e aquele bocado de rede com 3 metros de largura, que possa impedir, estorvar ou, por alguma forma, dificultar a entrada e passagem dos AA, quer a pé, quer com viaturas motorizadas ou não, para o seu referido prédio; e) A abster-se de, por qualquer forma, impedir, estorvar ou dificultar a entrada e passagem dos AA, a pé ou com viaturas, pela referida servidão, até atingir o seu prédio.

Fundamentaram estas pretensões no facto de serem proprietários do prédio rústico, localizado em …, que não tem comunicação com via pública, fazendo-se o seu acesso através de um caminho, com cerca de 3 m de largura e 500 m de cumprimento, marcado no terreno, com leito determinado e calcamento do terreno pelos pés das pessoas e rodados de carros de bois, tractores e outros veículos, com início na Rua …, passando junto ao muro de vedação da fábrica de resinas da ré, atravessando-o até alcançar a antiga Mata Nacional, de desde sempre, por si e antepossuidores, há mais de 80 anos, acederem, continuamente, ao seu prédio, através daquele caminho, passando nela a pé, com tractores e outros veículos, á frente de toda a gente, sem oposição, com consciência de exercerem o direito de passagem e de não lesar direitos de terceiros, pelo que se acha constituída, por usucapião, uma servidão legal de passagem, de a ré, em Janeiro de 2009, ter construído, no leito do caminho, um silo, que o ocupa em toda a largura, tendo, ao lado dele, aberto um outro caminho, pelo que continuaram a poder aceder ao seu prédio, e de, em 27 de Outubro de 2010, a ré ter vedado, com uma rede, este caminho, cortando o acesso ao seu pinhal.

A ré defendeu-se alegando que o prédio dos autores sempre teve ligação com a via pública por três caminhos, livres e desimpedidos, que não construiu um silo, mas uma ETAR que utiliza na sua actividade de exploração de resinas, fundamental no tratamento das águas provenientes da sua fábrica, que custou mais de € 1 000 000,00, tendo gasto, só em betão, € 600 000,00, que desde a construção da ETAR os autores sempre tiveram acesso pelo caminho que alargou e passa ao lado da ETAR, acedendo, desde a construção desta, ao seu prédio por esse caminho, e que os autores, por visarem criar uma desproporção objectiva entre o exercício do seu direito e as consequências económicas que teria de suportar, agem com abuso do direito.

Oferecida a resposta, procedeu-se à selecção da matéria de facto, tendo a ré reclamado contra a base instrutória, pedindo, com fundamento na sua necessidade para a boa decisão da causa, a inserção nela dos enunciados de facto que articulou nos artºs 3º 6º, e 11º a 16º da contestação.

A Sra. Juíza de Direito, porém, indeferiu a reclamação, sem prejuízo de esses factos poderem ser aditados à base instrutória em sede de julgamento, se assim entender o juiz que vier a presidir ao julgamento, nos termos do disposto no artº 650º, nº 1 f) do C.P.C.

Na audiência de discussão e julgamento, realizada no dia 5 de Junho de 2013, a Sra. Juíza de Direito, que a ela presidiu, …, apercebendo-se que, em sede de contestação, foi arguida pela ré a excepção do abuso de direito e não tendo os factos invocados para o efeito sido levados à base instrutória, ao abrigo do disposto no artº 650 nº 2, alínea f), determinou o aditamento à base instrutória dos seguintes factos: 14º Os autores têm acesso ao prédio referido em A. da matéria assente por três formas: - Uma com início no …? - Outras duas têm ambas início na Z…, sendo que uma tem início na rua do … e outra tem início na Rua dos …? 15º A ETAR tem um papel fundamental no tratamento das águas provenientes da fábrica da Ré? 16º A construção da ETAR teve um custo superior a € 1 000 000,00, sendo que só em betão a ré gastou cerca de € 600 000,00? Decidida, por aquela Sra. Juíza, no dia 9 de Julho de 2013, a matéria de facto controvertida, a sentença final da causa – proferida no dia 17 de Setembro de 2013, pela Sra. Juíza de Direito, … - com fundamento em que se é certo que os autores adquiriram uma servidão por usucapião a favor do prédio de que são proprietários, não é menos verdade que essa não é a única forma que dispõem de aceder a esse prédio, circunstância que, conjugada com os elevadíssimos custos suportados pela ré para a construção da ETAR levam a que se conclua necessariamente que o direito que os autores querem exercer com a presente acção se mostra manifestamente excessivo., resultando tal excesso da ponderação dos benefícios que os autores retirariam com a construção da servidão predial de passagem e dos custos que a ré teria que suportar com a retirada da ETAR de forma a permitir a passagem dos autores, não restando, por isso, dúvidas que os autores agem com abuso de direito, e havendo abuso, não há direito - julgou a acção improcedente.

É esta sentença – cuja notificação às partes foi elaborada no dia 21 de Outubro de 2013, que os autores impugnam no recurso ordinário de apelação – no qual pedem que a ré seja condenada nos pedidos, tomando-se em consideração, na decisão, a situação existente no terreno, no momento do encerramento da discussão, nos termos do referido auto de inspecção ao local, realizada em 05.06.2013 ou, caso assim se não entenda, pelo menos parcialmente procedente nos termos da alínea N) - tendo rematado a sua … A ré concluiu, na resposta, pela improcedência do recurso.

  1. Factos provados.

    … 3.

    Fundamentos.

    3.1.

    Delimitação do âmbito objectivo do recurso.

    Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito objectivo do recurso pode ser limitado, pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição ou, expressa ou tacitamente, nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC de 1961).

    Nestas condições, tendo em conta o conteúdo das decisões impugnadas e da alegação de ambas as partes, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se: a) A sentença final da causa, por violação do princípio da plenitude da assistência do juiz, deve ser declarada sem efeito; b) O despacho do tribunal da audiência que ordenou ao aditamento à base instrutória dos pontos de facto nºs 14 a 16 deve ser anulado e estes pontos de facto declarados não escritos; c) A sentença final da causa deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedente todos os pedidos, ou, ao menos, o pedido de remoção da rede de vedação, implantada na servidão de passagem.

    A resolução destes problemas vincula, naturalmente, ao exame, leve mas minimamente estruturado, do princípio da plenitude da assistência do juiz e da consequência jurídica que deve associar-se à sua infracção, à eficácia da composição do objecto da prova resultante do despacho da selecção da matéria de facto e do despacho que decida a reclamação produzida contra aquela selecção e, finalmente, dos pressupostos do abuso do direito.

    3.2.

    Ineficácia da sentença final da causa por violação do princípio da plenitude da assistência dos juízes.

    A lei adjectiva vigente ao tempo da realização da audiência de discussão e julgamento e do proferimento da decisão da matéria de facto organizava-se, nitidamente, segundo um modelo de separação ou de césure entre a decisão da matéria de facto e o proferimento da sentença.

    Assim, à luz daquela lei, a fase da audiência final compreendia as actividades de produção da prova – constituenda – de julgamento da matéria de facto e de discussão sobre a matéria de direito. Uma das funções primordiais desta fase era, por isso, a produção da prova e o consequente julgamento da matéria de facto (artºs 652 nº 4, 653 e 657 do CPC de 1961). Um princípio estruturante desta fase era, decerto, o da plenitude da assistência dos juízes, de harmonia com a qual só podiam intervir na decisão da matéria de facto aqueles que tivessem assistido a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência (artº 654 nº 1 do CPC de 1961). A justificação desta regra é óbvia ou evidente: trata-se de uma exigência lógica e iniludível do regime da oralidade. Tal assistência é condição absolutamente imprescindível do consciencioso julgamento da matéria de facto, dado que – por razões que se explicam por si – não pode decidir aquela matéria quem não presenciou, do princípio ao fim, todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência.

    A violação do princípio originava, porém, um simples nulidade processual, inominada ou secundária (artº 201 do CPC de 1961)[1].

    Para assegurar a plenitude da assistência determinava-se, designadamente, que se o juiz que tivesse começado a audiência fosse transferido, promovido ou aposentado, concluir-se-ia, em princípio, o julgamento antes da efectivação dessa...

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