Acórdão nº 54/08.1IDVIS-B.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 24 de Abril de 2013

Magistrado ResponsávelALICE SANTOS
Data da Resolução24 de Abril de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra No processo supra identificado, o recorrente A...

pela prática de um crime de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. pelo artº 105º, nº 1 e 4, do RGIT, foi condenado na pena de 170 dias de multa à taxa diária de € 6,00, o que perfaz um total de € 1.020,00 e, a empresa B...

, Lda, de que é o único sócio, gerente e administrador de facto e de direito desde a sua constituição, pela prática do mesmo ilícito, foi igualmente condenada na pena de 350 dias de multa à taxa diária de € 15,00, o que perfaz um total de € 5.250,00.

Após constatar-se que a sociedade arguida não tinha cumprido, com o pagamento, a quantia em que foi condenada, o Tribunal proferiu despacho nos termos do disposto no artº 8º nº 7 do RGIT, considerando o arguido solidariamente responsável pelo pagamento da pena de multa em que foi condenada a sociedade arguida.

Inconformado com tal despacho vem o arguido, A..., interpor recurso para este tribunal, sendo que na respectiva motivação formulou as seguintes conclusões: 1. Por sentença proferida nestes autos em 04.12.2009, já transitada em julgado, A... e “ B..., LDA.”, foram condenadas pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelo artigo 105°, n.°s 1 e 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o primeira na pena de 170 dias de multa à taxa diária de 6 €, e a segunda na pena de 350 dias de multa à taxa diária de 15€ - fls. 435 e ss.

  1. Em virtude de a sociedade condenada não ter procedido ao pagamento da pena que lhe foi imposta, veio o Ministério Público promover que, em face do disposto no artigo 8°, n.° 7, do RGIT, e considerando a responsabilidade solidária que daí decorre também para o condenado A..., se considere esta solidariamente responsável pelo pagamento da multa aplicada àquela — fls. 795/796.

  2. Entendeu, a final, o Tribunal “a quo”: “Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 8°, n.° 7, do RGIT, e indo ao encontro da douta promoção de fls. 795 e 796, decide-se: declarar o condenado A... solidariamente responsável pelo pagamento da pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 15 € (quinze euro), aplicada nestes autos à sociedade “ B..., Lda.”.

    É desta decisão que ora se recorre.

  3. O objecto deste recurso resume-se à transmissão de uma responsabilidade penal que era, originariamente, imputável à sociedade ou pessoa colectiva, e a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo.

  4. A verdade é que a decisão recorrida viola os princípios da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência do arguido, consagrados no n.° 3 e do artigo 30.° e no n.° 2 do artigo 32.° da Constituição da República.

  5. A decisão recorrida é, ainda, inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.

  6. O fundamento onde basicamente se alicerça este juízo de inconstitucionalidade é a violação da regra da intransmissibilidade da responsabilidade penal, consagrada no artigo 30.°, n.° 3, da CRP.

  7. O recorrente, gerente, só pode ser responsabilizado por facto próprio (como não pode deixar de ser, tratando-se de uma responsabilidade subjectiva), não coincidente com o facto gerador da sanção pecuniária.

  8. Estamos em face de duas relações, de fonte e natureza distintas.

  9. À dualidade de sujeitos corresponde uma dualidade de relações obrigacionais, sendo que uma se constitui como eventual sucedâneo da outra, pois o seu nascimento está condicionado á verificação, em processo executivo, da impossibilidade, imputável a uma conduta faltosa do administrador, de realização coerciva do débito que recai sobre a pessoa colectiva multada.

  10. Nesta visão dual, de diferenciação dos factos constitutivos e de títulos de chamamento á responsabilidade dos dois sujeitos sucessivamente obrigados, não há lugar para a aceitação da ocorrência de um fenómeno de transmissão, já que este pressupõe, no rigor dos termos, uma modificação subjectiva, uma sucessão na titularidade de um direito ou de uma obrigação, no âmbito de uma relação que não perde, por isso, a sua identidade.

  11. A qualificação da responsabilidade dos administradores como civil permite, pois, resolver facilmente em sentido negativo, a questão da ocorrência de um fenómeno de transmissão, na medida em que acentua e estabelece com nitidez máxima a diferenciação das situações debitórias da pessoa colectiva que cometeu a infracção e a dos administradores que podem ser chamados a responder: enquanto que, a responsabilidade da pessoa colectiva, é de cariz sancionatório, a dos administradores configura-se como puramente civilística, com função e natureza ressarcitórias.

  12. Acresce que, a admitir-se que a mudança dos sujeitos responsáveis vem acompanhada por uma mudança da natureza da responsabilidade, então também é forçoso admitir que não são atingidos os fins que justificam a imposição da multa.

  13. De facto, e ainda que similares quanto à estrutura e objecto, os dois vínculos divergem, nesta óptica, quanto á função, não podendo, por falta de homologia funcional, a responsabilidade dos administradores substituir-se à da pessoa colectiva, “fazer vezes” desta, como um mecanismo sub-rogatório da que se traduz, a título sancionatório, no pagamento da multa.

  14. Responsabilidade penal e responsabilidade civil não são sobreponíveis, preenchem distintos espaços de imputação de condutas lesivas de valores juridicamente tutelados, resultam de ilícitos de natureza distinta, pelo que a responsabilidade civil não pode ser actuada subsidiariamente, em consequência da frustração da responsabilidade penal, para satisfazer, por via indirecta, os fins próprios desta.

  15. E, sempre na responsabilidade penal, a vinculação ao pagamento de uma importância monetária, a título de multa, tem carácter instrumental da realização de fins de outra natureza, de reafirmação da ordem de condutas desrespeitada, de sanção ao agente por se ter desviado dos deveres decorrentes do exercício de determinada actividade social e de dissuasão de práticas futuras criminais.

  16. A sua função é puramente sancionatória e preventiva.

  17. Já a responsabilidade civil visa a reposição de um equilíbrio patrimonial afectado por um facto danoso.

  18. Dados os distintos fundamentos e fins dos dois sistemas de responsabilidade, é problemático ver no não pagamento da multa um prejuízo patrimonial configurável como um dano de natureza civil, indemnizável ao abrigo da correspondente responsabilidade.

  19. Se o fim da multa não era a obtenção de uma receita (mas a imposição de um sacrifício económico, com fins repressivos e preventivos), dificilmente se pode considerar que o não pagamento (ainda que associado a outros factores) gera um dano enquadrável, como um dos seus pressupostos, na responsabilidade civil.

  20. Não há, assim, a automática transposição, sem mais, para a esfera de um sujeito, da responsabilidade inicialmente gerada na esfera de um outro, por força de factores exclusivamente atinentes à esfera jurídica deste último.

  21. O chamamento do gerente ou administrador à responsabilidade não se dá por força dos mesmos factores de imputação que conduziram á responsabilidade da pessoa colectiva, meramente redireccionados, por um mecanismo de transmissão, para a esfera debitória daquele sujeito.

  22. Dá-se porque esse sujeito «incumprindo deveres funcionais, não providenciou no sentido de que a sociedade efectuasse o pagamento da multa em que estava definitivamente condenada e deixou criar uma situação em que o património desta se tornou insuficiente para assegurar a cobrança coerciva» (Acórdão n.° 150/2009).

  23. Daí que esteja assegurada a conexão da sanção com a prática de actos ou omissões por aqueles que a sofrem, mesmo que se admita, na esteira do que acima defendemos uma comunhão de natureza das duas responsabilidades, o que implica atribuir natureza sancionatória também à que recai sobre os administradores.

  24. As consequências sancionatórias a que os administradores ficam sujeitos poderiam ter sido por eles evitadas mediante práticas de gestão não culposas.

  25. Ora, quando carregado com o sentido valorativo adveniente do princípio da pessoalidade das penas que o informa, o conceito de transmissão não abrange situações deste tipo.

  26. Em face do exposto, a questão de constitucionalidade que nos ocupa pode ser formulada, em último termo, como sendo a de decidir da admissibilidade constitucional de um regime sancionatório em que a medida da multa não depende da avaliação, em concreto, do grau de culpa do responsável e das circunstâncias específicas que rodearam a sua actuação.

  27. Há que ponderar, antes de mais, que, neste caso, a total insensibilidade a factores pessoais, na determinação da medida da sanção, não resulta apenas da irrelevância de elementos de responsabilização reportados à culpa, em concreto, do responsável.

  28. Na verdade, pessoas colectivas e pessoas físicas são entes morfologicamente bem distintos, com estrutura e grandeza de património tipicamente diferenciáveis.

  29. Em resultado, a incidência patrimonial subjectiva, o “grau de sacrifício” que uma mesma multa comporta, não são idênticos, quando aplicadas a uma pessoa colectiva ou a um sujeito individual.

    31 Aliás, o que o legislador, de forma praticamente constante e por um imperativo de justa medida, leva em conta, fixando valores mais elevados para os limites mínimo e máximo das sanções a aplicar a entes colectivos.

  30. Tal como vem fixada no artigo 8.° do RGIT, a responsabilidade subsidiária subverte esse critério diferenciador, ao pôr a cargo do administrador o pagamento de uma multa ou multa fixadas dentro de uma moldura estabelecida por reporte a uma categoria de sujeitos de natureza distinta — a pessoa colectiva responsável pela infracção tributária que deu motivo á sanção.

  31. Aliás, no caso concreto, a pena de multa aplicada ao recorrente, ab inicio, foi, por tudo isto, substancialmente diferente.

  32. O recorrente foi condenado a pagar uma multa de 1.020,00€. Ao invés, 35.A sociedade foi...

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