Acórdão nº 10452/08.5TDPRT.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 01 de Março de 2010

Magistrado ResponsávelFRANCISCO MARCOLINO
Data da Resolução01 de Março de 2010
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REC. PENAL.

Decisão: PROVIDO.

Indicações Eventuais: LIVRO 611 - FLS. 223.

Área Temática: .

Sumário: I-. São elementos do tipo de desobediência, quando esta não esteja expressamente punida por lei, a existência de (i) um comando da autoridade ou do funcionário, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, que pode ser positiva (acção) ou negativa (omissão), em termos concretamente definidos na ordem ou mandado e apreensíveis; (ii) uma ordem substancial e formalmente legítima; (iii) competência para tanto da autoridade que dá a ordem; (iv) regular comunicação da ordem ao destinatário. É ainda comummente aceite que a autoridade ou o funcionário só podem impor a conduta, sob pena de desobediência, se o comportamento em causa não constituir um ilícito, seja ele de natureza criminal ou contra-ordenacional.

II-. A contra-ordenação p. e p. pelo n.º 8 do art. 161º do C. Estrada prevê apenas a condução de veículo com documentos apreendidos, pois que se limita a punir com coima quem conduzir veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido. Mas já não prevê a situação de quem conduzir veículo apreendido, sendo que é possível conduzir veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido, sem que o veículo esteja, ele também, apreendido.

III- O depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório, comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do art. 348º, 1, al. b) do C. Penal e não o crime de desobediência qualificada do art. 22º, 1 e 2, do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 5/2009, DR I-A, de 19/3/2009).

IV- Não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.

Reclamações: Decisão Texto Integral: Recurso 10452/08.5TDPRT.P1 * Acordam no Tribunal da Relação do Porto O Digno Magistrado do M.º P.º afecto ao DIACP do Porto acusou, em Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular, o arguido B…………..

, solteiro, nascido a //03/1988, filho de C………….. e de D…………., nascido a 07-03-1988, natural da freguesia de ……., concelho do Porto, e nesta cidade residente à Rua …….., n.° …., …° Esq., Porto, pela prática de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348°, n.°s l e 2, do C. P., em conjugação com o art.º 22 n.° l e 2 do DL 54/75 de 12 de Fevereiro, com base na seguinte factualidade: No dia 7 de Junho de 2008, na rua da ……….., Rio Tinto, o arguido B……………, conduzindo o veículo automóvel de matrícula ..-..-VE foi interveniente em acidente de viação.

No decurso da operação de fiscalização, o veículo em causa veio a ser apreendido em virtude de não dispor de seguro de responsabilidade civil.

O arguido foi designado fiel depositário do veículo apreendido e na altura foi devidamente advertido de que a utilização deste, enquanto estivesse apreendido, o faria incorrer no crime de desobediência (como melhor se observa da cópia certificada do documento de fls. 4, retirada de duplicado que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

Apesar de tal advertência e ciente que desrespeitava ordem legítima que lhe havia sido regularmente comunicada, o arguido B…………. no dia 9 de Junho de 2008, pelas 15h30m na estrada interior da Circunvalação, Porto, foi interveniente em outro acidente de viação, quando conduzia o referido veículo automóvel na via pública, bem sabendo que não o podia fazer.

O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, com o propósito de faltar à obediência devida à ordem que lhe fora regularmente comunicada e cuja observância lhe era imposta directamente por normas legais em vigor, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Remetidos os autos a Juízo, o Sr. Juiz rejeitou a acusação por a considerar manifestamente infundada, assim fundamentando: “O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B…………., imputando-lhe a prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo art. 348°, n°s l e 2, do Código Penal, com referência ao art. 22°, n°s l e 2, do Decreto-Lei n° 54/75, de 12/Fevereiro.

Dispõe o art. 311°, n° 2, ai. a), do Código de Processo Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

A acusação é manifestamente infundada quando, além do mais, os factos não constituírem crime (cfr. al. d) do n° 3 do preceito legal supra citado).

Ora, no caso, a acusação pública deduzida contra o arguido é manifestamente infundada porquanto os factos nela descritos não constituem, em nosso entender, crime.

Senão vejamos.

O Ministério Público acusa o arguido de, no dia 9/Junho/2008, em desobediência à ordem que lhe foi dada pela autoridade policial competente, ter conduzido um veículo que lhe havia sido anteriormente (em 7/Junho/2008) apreendido, por falta de seguro válido, sendo que, aquando da referida apreensão, o arguido foi advertido de que não o podia utilizar, sob pena de incorrer num crime de desobediência.

Dispõe o art. 348° do Código Penal que: «1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ou emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se: Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

2. A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada».

Como bem refere a Dr.ª Cristina Monteiro in «Comentário Conimbricense do Código Penal», tomo III, pg. 351, «Faltar à obediência devida não constitui, porém, por si só, facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige, para além do que fica dito (comunicação regular), que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado».

Um dos elementos típicos do crime de desobediência qualificada (além da existência de uma ordem ou mandado; legalidade substancial e formal da ordem ou mandado; competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão; regularidade da sua transmissão ao destinatário previstas no corpo do n.° 1) é a previsão, por uma norma legal, da punição da conduta como desobediência qualificada.

No caso, a norma legal cominatória da desobediência qualificada identificada na acusação é o artigo 22°, n°s l e 2 do Decreto-Lei n° 54/75, de 12/02.

Ora, apesar de haver quem entendesse que a conduta do arguido seria subsumível à previsão do artigo 22°, nº 2 do Decreto-Lei n° 54/75, de 12/02, o certo é que, com a recente publicação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 5/2009 (publicado no DR n° 55, 1a Série A, de 19.03.2009), ficou clarificado que «o depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348°, n° l, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do art. 22°, n°s l e 2, do Decreto-Lei n° 54/75, de 12 de Fevereiro» (sublinhado nosso).

Importa, por isso, averiguar se a apurada conduta do arguido integra a previsão da alínea b) do n.° l do art. 348° do Código Penal.

Esta alínea b) existe para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, preveja um determinado comportamento desobediente, caindo no âmbito da mesma, conforme nota Cristina Líbano Monteiro (ob. cit. pág. 354), desobediências não tipificadas, não previstas em qualquer ramo do direito sancionatório, que ficam dependentes, para a sua relevância penal, de uma simples «cominação funcional».

Ora, «não podendo fugir à letra da lei, será tarefa dos tribunais ajuizar, caso a caso, se o princípio da insignificância ancorado no carácter fragmentário e de última ratio da intervenção penal, não levará com frequência a negar dignidade penal a algumas condutas arguidas de desobediência (do art. 348°) porventura pelo excesso de zelo de um dedicado servidor da administração pública. Aquilo que nem sequer foi considerado merecedor de tutela por parte de uma ordem sancionatória não penal, dificilmente (por maioria de razão) será merecedor de tutela penal. Como excepção, restarão porventura desobediências em matérias que, pelo seu recente aparecimento ou aquisição de importância aos olhos da comunidade jurídica, não foram ainda objecto de oportuna intervenção legiferante» (Cristina Líbano Monteiro, cit. 354).

No caso dos autos, apesar de não se discutir a legalidade da ordem e a legitimidade da autoridade que a proferiu (pois a falta de seguro constitui contra-ordenação, devendo o veículo ser apreendido pelas autoridades de fiscalização ou seus agentes quando transite sem que tenha sido efectuado o seguro de responsabilidade civil nos termos da lei - cfr. art.ºs 150°, n°s l e 2, e 162°, n° l, al. f), do Código da Estrada, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n° 44/2005, de 23/02), bem como a regularidade da comunicação, o certo é que, existindo ilícito próprio no qual se subsume a conduta do agente que não respeite a proibição de conduzir um veículo apreendido por falta de seguro obrigatório (cf. art. 161°. n° 7, do Código da Estrada), considera-se que a autoridade policial não podia cominar com o crime de desobediência o desrespeito pela ordem dada.

Face à clarividência da respectiva argumentação, com a qual concordamos na íntegra, atrevemo-nos...

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