Acórdão nº 0816634 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 25 de Fevereiro de 2009

Magistrado ResponsávelLUÍS TEIXEIRA
Data da Resolução25 de Fevereiro de 2009
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Recurso nº 6634/07-1.

  1. Secção Criminal.

    Processo nº 132/04.6IDTALSD.

    I Acordam em audiência de julgamento na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto: 1. No processo nº 132/04.6IDTALSD do Tribunal Judicial de Arouca, em que são arguidos, B.............., casada, doméstica, filha de C............... e de D.............., natural do Porto, nascida em 3-3-1962, residente em lugar de ..........., ..............., Arouca, e E.............., casado, maquinista de terraplanagem, filho de F..............., natural de Angola, nascido em 25-1-1953, residente no lugar .........., ............., Arouca, Foram os mesmos julgados e a final, decidido: "- condeno os arguidos B.............. e E................. como co-autores materiais de um crime continuado de abuso de confiança fiscal p. pelo artigo 24º, n.º 1, n.º 2 do Dec.-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção que lhe foi introduzida pelo Dec.-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro) e p. pelo artigo 105º, n.º 1 da Lei n.º 15/2001, de 5-6 e artigos 26º e 30º, n.º 2, ambos do Código Penal, aplicável por força do artigo 4º, n.º 1 do referido diploma avulso, respectivamente, nas penas de multa de 200 e de 150 dias, à taxa diária de 5 euros o que perfaz o quantitativo global de € 1000,00 e de € 750,00; - Julgar procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido e condenar solidariamente os demandados no pagamento da quantia de € 13.442,11, a que acrescem os juros de mora calculados desde a data de vencimento de cada uma das prestações de IVA não entregues ao Estado, à taxa de 7% até 30-4-2003 e à taxa legal de 4% a partir de 1-5-2003 até efectivo e integral pagamento.

    1. Da sentença recorrem ambos os arguidos.

      Formulam as seguintes conclusões: I - Com o devido respeito, os Arguidos, ora Recorrentes, discordam, da decisão de condenação contra si proferida.

      II - Ao contrário do que decorre da sentença proferida pela meritíssima juiz "a quo", a arguida não praticou o crime que lhe foi imputado não tendo por isso qualquer responsabilidade objectiva e/ou subjectiva na prática dos factos.

      III - É certo que a arguida B............... encontrava-se no ano de 2000, tributada em IRS- Categoria B e enquadrada em IVA no regime normal de periodicidade trimestral pelo exercício da actividade de "Terraplanagem e demolições" (CAE 45110).

      IV - A gerência e o exercício de tal actividade era única e exclusivamente levada a cabo pelo seu marido Alberto que contratava os trabalhos, recebia os pagamentos e emitia as facturas referentes a esses serviços conforme as declarações supra transcritas do arguido E............., da Arguida B............. e da testemunha G...............registados respectivamente na cassete nº 1, lado A, de 0000 a 253 do contador, de 309 a 1080 do contador, de 254 a 308 do contador, de 1081 a 1468 do contador e de 1779 a 2023 do contador.

      V - A arguida B.............. apenas se colectou no Serviço de Finanças local, pelo exercício de tal actividade, por razões de ordem meramente formal.

      VI -No dia a dia, a arguida limitava-se a ser a "moça de recados" do marido no sentido de lhe levar combustível quando este faltava, peças para as máquinas quando estas avariavam e por vezes levava a documentação para a contabilidade sem saber do que se tratava.

      VII- A arguida não geria e orientava a empresa, não contactava com os clientes, apenas os conhecendo pelo seu nome, não fixava os preços, não emitia as facturas, era doméstica, mãe de cinco filhos a seu cargo, com idades próximas dos 19, 16,13,4 e um filho de meses.

      VIII - O art. 105º do RGIT - tal como, já antes dele, o fazia o art. 24º do RJIFNA - prevê o tipo de ilícito criminal epigrafado de "Abuso de Confiança".

      IX - O Regime Geral de Infracções Tributárias (RGIT) - à semelhança do que já consignava o art. 29º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA) - prevê no seu art. 114º o tipo de ilícito contra-ordenacional cujo objecto consiste na "Falta de entrega da prestação tributária", como reza o seu proémio.

      X - Sejam qualificados como crime ou como contra-ordenação, os factos ilícitos são os mesmos nos arts. 105º e 114º do RGIT - a não entrega "à administração tributária, total ou parcialmente, da prestação tributária deduzida nos termos da lei", sendo havida, para este efeito, como prestação tributária "a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja".

      XI - Porque o bem jurídico protegido por ambas as normas é exactamente da mesma natureza e reclama a mesma extensão e intensidade de tutela jurídica, para quem defendesse serem eles irredutivelmente incompatíveis - o que, salvo melhor opinião, não parece ser o caso - teria de resolver o conflito fazendo o art. 105º ceder perante o art. 114º por força dos princípios de última "ratio" e da necessidade que enformam o direito penal.

      XII - Nos termos do art. 9º, nº 3, do Código Civil: "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados", impõe-se fazer uma interpretação do nº 1 do art. 114º e do art. 105º que permita a sua compatibilização normativa respeitando a ratio essendi da alteração, por intercalamento do inciso "ou por período posterior, desde que os factos não constituam crime", naquela primeira norma (que não constava no art. 29º do RJIFNA) e que só pode ter sido introduzido pelo legislador de forma pensada e para ter alcance prático.

      XIII - O conceito de crime de abuso de confiança fiscal (criado pelo legislador, mas que, na realidade, não existe, por impossibilidade teórica e prática) não se basta com a mera não entrega à administração tributária da prestação tributária, exigindo um "plus", que não é, (porque impossível) a apropriação pelo agente do objecto da prestação, mas que será seguramente o propósito de não a entregar, exteriorizada, v.g. pela colocação intencional do agente em posição de se furtar, com êxito, ao cumprimento do dever de prestar.

      XIV - Isto é, só haverá crime de abuso de confiança fiscal se o agente se apropriar da prestação tributária e se recusar a entregá-la ao Estado sem que o Estado possa (v.g. por inexistência de bens penhoráveis) coagi-lo ao cumprimento da prestação.

      XV - Caso o agente venha a entregar a prestação à administração tributária por iniciativa própria ou em resultado do accionamento dos meios legais, coercitivos ou não - v.g. o processo de execução fiscal, com penhora e venda de bens e a compensação de créditos (cfr. art. 88º do CPPT) - não haverá crime, mas mera contra-ordenação.

      XVI - No caso vertente, os arguidos, só não entregaram ao Estado as prestações tributárias liquidadas por graves dificuldades financeiras de que se faz eco a motivação da decisão do tribunal "a quo".

      XVII - Os arguidos, não dispunham de meios financeiros para, naquele contexto, entregar as prestações tributárias ao Estado tendo agido sem dolo e mesmo no contexto de estado de necessidade ou de inexigibilidade de outro comportamento, não tendo, assim, praticado o crime que lhe vem imputado.

      XVIII - Um dos princípios estruturantes do estado de direito (que a Constituição diz Portugal ser) é o princípio da justiça de que o princípio da igualdade é um seu corolário.

      XIX - No caso em apreço - e no que concerne especificamente à criação no ordenamento jurídico-penal-fiscal português da figura do crime de abuso de confiança - e o mesmo se diga, quanto à aplicação das penas nele previstas - inexiste esse pressuposto essencial da intervenção criminalizadora, que é a sua legitimidade ou validade ética, seja enquanto validade sociológica, seja enquanto validade ética, "stricto sensu".

      XX - Quanto à validade sociológica, é sabido que, por razões históricas, idiossincráticas e de deficiente preparação para a cidadania, o não pagamento de impostos não conseguiu impor-se e radicar-se na consciência colectiva dos portugueses como um comportamento eticamente censurável.

      XXI - Para essa não adquirida consciência colectiva do desvalor ético-jurídico da fuga ao imposto - que não é o caso dos arguidos, pois trata-se apenas de atraso involuntário no pagamento - tem concorrido, a muitos títulos, o próprio Estado, quer quando cria e aplica impostos desmesurados, quer pela injustiça na distribuição da carga fiscal que, na obra citada, Medina Carreira denuncia e demonstra com recorrentes acusações de iniquidade e desequilíbrio dirigidas ao sistema fiscal e à sua incidência desigual e arbitrária sobre os contribuintes.

      XXII - O imposto tem uma função meramente instrumental, mas tem sistematicamente - tal como as normas fiscais - sido sujeito a sucessivas manipulações oportunísticas pelas forças políticas, sociais e económicas que se apoderaram do Estado e dele se servem para a prossecução dos seus interesses, sempre em nome do povo, mas contra o povo.

      XXIII - A percepção das iniquidades do sistema fiscal e das chocantes discriminações na sua aplicação e no tratamento dos contribuintes, por um lado, e a tomada de consciência da delapidação (eufemisticamente chamada de desperdício) dos recurso financeiros do Estado obtidos essencialmente dos impostos são um contra-estímulo poderoso ao cumprimento das obrigações fiscais e à emergência de uma consciência ético-jurídica da colectividade.

      XXIV - Contra-estímulo que tem sido periodicamente reforçado pelas medidas de benevolência fiscal adoptadas para os contribuintes relapsos - de que são exemplo, nos anos mais recentes, o Dec-Lei nº 225/94, 5.09, secundado pelo Dec-Lei nº 124/96, de 10.08, e completado pela Lei nº 51-A/96, de 9.12, seguido do Dec-Lei nº 248-A/2002, 14.11, diplomas que ficaram conhecidos pelo nome dos ministros das finanças ao tempo, "Lei Catroga", "Lei Mateus" e "Lei Manuela Ferreira Leite".

      XXV - Sendo axiomático que o direito penal tem uma função meramente subsidiária na tutela dos bens jurídicos, ou seja, só é legítima a sua intervenção...

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