Acórdão nº 73/12.3PBCBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 22 de Janeiro de 2014

Magistrado ResponsávelOLGA MAUR
Data da Resolução22 de Janeiro de 2014
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra: RELATÓRIO 1.

Nos presentes autos foi a arguida A...

condenada na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 5 €, pela prática de um crime de abuso de confiança, do art. 205º, nº 1, do Código Penal.

Foi, também, condenada a pagar à ofendida B.... a quantia de 1830 €, ao abrigo do art. 82º-A do C.P.P.

  1. Inconformada a arguida recorreu, retirando da motivação as seguintes conclusões: «1. O tribunal a quo veio, em sentença proferida e depositada em 20 de Junho de 2013, condenar a arguida"[...] pela prática de um crime de abuso de confiança p.p. pelos art. 205.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 130 dias de multa à razão diária de 5 euros o que perfaz o montante de € 650. [...] Ao abrigo do disposto no art. 82.º A do Cód. Proc. Penal, a arguida vai ainda condenada a efectuar o pagamento da quantia de € 1830 à ofendida B...

    . [...] no pagamento das custas criminais com taxa de justiça que fixa em 2 Ucs [... ]".

  2. Contudo, a arguida não pode conformar-se com tal decisão, pelo que, pelo presente, recorre, de facto e de direito, da sentença proferida.

    - DO ERRO DE JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO 3. Salvo o devido respeito e melhor opinião, o tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto, em especial, os pontos 2., 3., 4., 5., 6. e 7. dos factos dados como provados; 4. Deveria, outrossim e salvo melhor entendimento, ter julgado tais factos como não provados.

  3. Desde logo, mal andou o tribunal a quo ao ter decido como provado o facto referente ao valor das peças em ouro, porquanto não foram carreados para os autos elementos que permitissem ao tribunal a quo considerar que as peças de ouro em causa teriam um valor monetário de 1.830,00€ (mil, oitocentos e trinta euros), nem existe qualquer referência a qualquer documento ou prova de outra natureza que ateste o valor das peças e que tenha servido para a formação da convicção do tribunal a quo.

  4. Acresce que as testemunhas C....e de D....não presenciaram qualquer dos factos, detendo um conhecimento indirecto, limitado ao que a ofendida - com que têm uma longa e próxima relação - lhes havia dito.

  5. Ora, tais depoimentos são, pela sua natureza, absolutamente inábeis para deles retirar a ilação que o tribunal a quo firmou na sentença ora sindicada.

  6. Ora, relativamente aos factos, ambas as testemunhas apenas se limitaram a reproduzir a versão que lhes havia sido transmitida pela ofendida, não tendo podido assegurar que a ofendida tenha entregue as peças de ouro (o colar de contas de Viana e a libra Rainha Vitória) à arguida ou que as referidas peças tenham entrado na esfera de posse da arguida.

  7. A arguida sempre negou os factos de que vinha acusada, refutando veemente que a ofendida lhe tenha entregue as peças em ouro e que elas tenham estado na sua posse.

  8. Assim, deveria o tribunal a quo ter firmado entendimento no sentido da absolvição da arguida, partindo do pressuposto de que, "O crime de abuso de confiança só se consuma a partir do momento em que se verifica a inversão do título de posse, isto é, quando o agente, detentor ou possuidor legítimo, a título precário ou temporário, faz entrar a coisa no seu património ou passa a dispor dela como se fosse sua." (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 16 de Maio de 2007, no âmbito dos autos de processo n.º 101/06.ITACVL.C1), o que não se aconteceu in casu; 11. Na verdade, a prova em que o tribunal a quo sustenta a sua convicção resume-se ao depoimento da ofendida, porquanto as restantes testemunhas de acusação foram peremptórias em afirmar que o seu conhecimento dos factos lhe havia sido dado por interposta pessoa.

  9. Com efeito, a prova produzida em audiência de julgamento não é cabal para dela infirmar: a) que a ofendida entregou as peças de ouro à arguida (factos 2. e 4. dado como provado); b) que o valor das duas peças de ouro era de 1.830,00€ (mil, oitocentos e trinta euros) (facto 2. e 5. dado como provado); c) que a arguida se apropriou das referidas peças de ouro, não as tendo devolvido, tendo-as feito suas (facto 4. dado como provado); d) que o alegado prejuízo da ofendida terá sido no valor de 1.830,00€ (mil, oitocentos e trinta euros) (facto 5. dado como provado); e) que a arguida agiu com intenção de fazer suas as peças que a ofendida se havia comprometido emprestar-lhe (facto 6. dado como provado); e) que a arguida tenha agido intencional e conscientemente, dando à ofendida a indicação de que as peças haviam ficado em poder desta última (facto 7. dado como provado).

  10. A convicção do julgador tem de ser objectivável e motivável em elementos objectivos, que a tornem credível e conforme com as regras da experiência, da lógica, da racionalidade, da razoabilidade.

  11. Ao ter decidido como na sentença sindicada, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e, bem assim, as mais elementares regras da prova e o princípio in dubio pro reo (número 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa).

  12. Com efeito, perante a prova produzida em audiência de julgamento sempre deveria o tribunal a quo ter lançado mão do princípio in dubio pro reo, que impunha a absolvição da arguida.

  13. Assim, e face à alteração da matéria de facto dada como provada, como se requer, resulta clara a inexistência de factos subsumíveis na tipificação legal do crime de abuso de confiança, sendo certo que, ainda que não se procedesse a tal alteração da matéria de facto sempre se diria não estarem preenchidos tais elementos, como se verá seguidamente.

    Não obstante, e sem prescindir no atrás alegado DO RECURSO DE DIREITO 17. O tribunal a quo errou manifestamente na apreciação e valoração que fez das provas produzidas em julgamento, tendo violado as regras da experiência comum na apreciação que fez de algumas provas e baseando-se em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios.

  14. Com efeito, o tribunal a quo alicerçou a sua convicção no total ênfase atribuído ao depoimento da ofendida, que considerou "[...] entristecida [...]", "serena", com "atitude e postura humilde e modesta [...]", de "modesta condição", com "atitude generosa e ingénua [...]" e no depoimento das testemunhas C....e de D....foram valorados tendo por base o carácter das profissões que exercem, ofuscando a relação próxima de há longos anos (mais do que uma relação de conhecimento, uma relação de amizade) que liga ambas as testemunhas à ofendida e ofuscando que o conhecimento dos factos de ambas as testemunhas advinha dos relatos que lhes haviam sido feitos pela ofendida.

  15. Com efeito, o tribunal a quo apreciou as provas enunciadas supra numa atitude paternalista para com a ofendida, resultando claro e evidente, aos olhos de um qualquer cidadão comum, que os fundamentos que serviram de base à formação da convicção do julgador são parciais, ilógicos e inaceitáveis.

  16. Assim, a prova produzida em audiência deveria, salvo melhor entendimento, ter sido apreciada pelo tribunal a quo de forma mais pragmática, verificando-se e concluindo-se, designadamente, que os depoimentos das testemunhas C....e de D....foram depoimentos indirectos, porquanto o seu conhecimento era limitado ao que haviam ouvido dizer pela ofendida.

  17. Como concluiu o tribunal a quo, e bem nesta parte, a arguida e a ofendida estavam sozinhas na habitação desta última, não existindo ninguém que tenha presenciado a alegada entrega e a suposta apropriação das peças de ouro. Esta sim, é a dinâmica do processo, e apenas esta materialidade (a entrega ou não entrega das peças de ouro) constitui o seu objecto.

  18. Ora, o que podem as testemunhas saber sobre o que realmente aconteceu?! Viram?! Estavam lá?! O próprio tribunal a quo concluiu que não! Não pode o tribunal a quo concluir pela responsabilidade penal de uma pessoa tão-só porque as testemunhas arroladas e inquiridas em julgamento - com relação de proximidade com a ofendida - discorrem acerca da ingenuidade e da tristeza de quem é alegadamente ofendido.

  19. A inadmissibilidade do depoimento indirecto resulta inequivocamente da lei, pelo que, ao decidir da forma que o fez, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 127.º e 129.º, bem como o disposto no número 2 do artigo 374.º, todos do Código de Processo Penal.

  20. Acresce que o depoimento da testemunha de defesa - F...

    - não foi sequer considerado, por, alegadamente, o tribunal a quo ter entendido que, por ser amiga da arguida, o depoimento da testemunha se mostrou "parcial e comprometido [...]". Pergunta-se: os depoimentos das testemunhas já identificadas não são também, e no fundo, depoimentos de amigos próximos ou de pessoas do círculo de relação próxima da ofendida"! Poderá retirar-se das palavras da testemunha F.... um tal apego que justifique a sua total irrelevância? Porque razão o tribunal a quo efectuou uma valoração dispare dos testemunhos? 25. Assim, e em face de todo o exposto, a prova produzida foi deficientemente valorada pelo tribunal a quo. A prova produzida em audiência de julgamento não pode, por si só e sem mais, conduzir à conclusão plasmada na sentença ora sindicada com a condenação da arguida, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva a arguida da prática do crime de que vem acusada.

    Ainda sem prescindir no atrás alegado, 26. A sentença proferida pelo tribunal a quo encontra-se ainda inquinada de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (alínea a) do número 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal), porquanto o tribunal a quo não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto, designadamente quanto ao valor das peças de ouro.

  21. Com efeito, dos pontos 1. e 5. dos factos dados como provados resulta que as peças de ouro (colar contas de Viana e a libra da Rainha Vitória) tinham o "valor global de € 1.830,00 [...]" e "A arguida causou um prejuízo no valor de € 1.830,00.".

  22. Salvo melhor entendimento, a prova produzida em audiência de julgamento não se revela bastante para a decisão da matéria de facto em causa...

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