Acórdão nº 999/11.1JAPRT.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 08 de Janeiro de 2014

Magistrado ResponsávelVÍTOR MORGADO
Data da Resolução08 de Janeiro de 2014
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Recurso nº 999/11.1JAPRT.P1 Origem: 2º Juízo Criminal do Porto Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto: I – Para julgamento em processo comum com intervenção de tribunal singular, o Ministério Público acusou o arguido B…, motorista, casado, nascido a 6.01.1959, residente na Rua …, nº …, …, Gondomar, de ter cometido um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382º do Código Penal, com referência ao artigo 386º, nº1, alínea a) e nº 2 do mesmo diploma legal e artigos 3º, 4º, 6º e 10º do Código de Conduta da CMPEA-Empresa de Águas do Município do Porto, E.E.M., Despacho nº 237/RH/2009, datado de 10/12/2009 e Despacho nº 1/52122/10CMO, datado de 14/04/2010, ambos da Câmara Municipal do Porto.

Realizou-se a audiência de julgamento com observância do formalismo legal, no final da qual o tribunal de 1ª instância proferiu sentença em que decidiu condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de poder previsto e punido pelo artigo 382º, com referência ao artigo 386º, nº 1, alínea a), e nº 2 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 8 (oito euros), perfazendo o montante global de € 800 (oitocentos euros).

*Inconformado com o assim decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, cujas alegações sintetizou através das seguintes conclusões: l- Carece de fundamentação e prova o vertido nos factos provados 2, 3, 4, 9, 12, 13.

2- A fundamentação está diretamente relacionada com os factos provados. Na verdade, para além de dar como provado o que nunca foi afirmado "amigo" "fez a proposta" serve-se desses elementos, já de si meras ilações, para concluir pela convicção que leva à natureza do crime.

3- A caixa a intervencionar não se situa no domínio público – de resto, tal afirmação contradiz as declarações da Eng.ª C… (depoimento prestado em 14/11/2012 das 14:55:01 até às 15:58:45).

4- Nunca o arguido afirmou que iria mandar realizar o trabalho por "um amigo".

Não disse que "acompanharia" "o dito amigo", referiu que deixou o seu contacto para depois levar ao local "o trolha".

5- A fundamentação é, pois, absolutamente contrária aos factos apurados.

6- Desde logo, não se apurou que o arguido soubesse da natureza gratuita dos serviços prestados. Mas apurou-se que esse serviço não é das Águas do Porto, mas cabe ao proprietário do imóvel.

7- Ficou claro do depoimento da Eng.ª C… (depoimento prestado em 14/11/2012 das 14:55:01 até às 15:58:45) que os serviços pagos são faturados e não passam pelo Arguido; nem o conhecimento da fatura, nem o conhecimento dos valores.

8- Também ficou claro que quem executa esse serviço de remoção do sifão é uma empresa externa às Águas do Porto, a quem esta paga esses serviços.

9- Há clara intencionalidade, quando a douta sentença refere vezes sem conta que o trabalho seria a realizar por "um amigo" e que tinha a "intenção de acompanhar o amigo".

10- Nunca o arguido referiu tal facto.

11- Nenhuma das testemunhas ou documentos atestam tal convicção de intencionalidade criada pelo Tribunal com o intuito de acusar o arguido.

12- Assim, não se verificou qualquer violação dos deveres inerentes às suas funções.

13- Não ficou provada qualquer intenção de obter benefício ilegítimo para si ou para terceiro.

14- Não ficou provada qualquer intenção de causar prejuízo a outra pessoa.

15- O único facto que ficou provado e apenas por confissão do próprio foi que, face ao desespero do responsável pelo condomínio, o requerido comprometeu-se a arranjar um trolha.

16- Em relação ao facto n.º 2 e conforme largamente publicitado à data, os despachos 237/RHl2009 e 1/52122/1 O/CMP e respetivo Código de Conduta, não são aplicáveis aos trabalhadores das empresas municipais.

17- De resto, o novo Código de Conduta foi aprovado em 2011, após a ocorrência dos factos.

18- Quanto ao eventual Código de Conduta da Empresa Águas do Porto, não tem aplicação ao arguido.

19- As funções do arguido eram e são as de motorista e o facto de ter um complemento ao vencimento para auxiliar o colega não altera em nada as suas funções e categoria profissional.

20- O bem jurídico, e ainda falamos do mesmo, é o exercício de funções públicas.

21- O arguido executou algum trabalho que fosse exclusivamente público? da alçada da empresa Águas do Porto? por si ou por interposta pessoa? Recebeu algum pagamento? 22- O arguido nada depôs ou foi deposto contra o mesmo que afete minimamente a sua integridade enquanto funcionário público.

23- Este tipo de crime de natureza residual não contempla a negligência ou ignorância indesculpável.

24- Esta norma só terá aplicação para um delito específico de abuso de poder.

25- Existe normativo específico para a conduta do arguido no referido Estatuto Disciplinar dos funcionários públicos. Está, de resto, em curso o procedimento disciplinar.

26- Tanto o arguido como a testemunha D…, ouvidos no CD a gravação em 30/10/2012, às 10:08:33 até às 10:49.50 e a 14/11/2012 das 15:58:47 até às 16:18:46, respetivamente, jamais afirmaram em momento algum do depoimento algo que pudesse conduzir à prova da violação do dever de isenção, ainda que e com a mesma definição adiantada pela douta sentença.

27- A testemunha D… (CO - depoimento gravado a 30/10/2012, às 10:08:33 até às 10:49:50) afirmou não saber qual o montante que seria cobrado e afirmou que o contacto telefónico lhe foi fornecido para indicar a pessoa que faria o serviço.

28- O arguido, contrariamente ao afirmado na douta Sentença, nunca em momento algum referiu conhecer quem faria o serviço e muito menos que seria seu amigo.

29- Apesar do princípio da livre apreciação da prova, nunca poderia o Tribunal "a quo" extrair das declarações do arguido e muito menos das restantes testemunhas a convicção do conhecimento do carácter ilegítimo da vantagem e consciência da ilicitude da atuação.

30- Consequentemente e contrariamente ao afirmado, "o tipo subjetivo" não admite qualquer modalidade de dolo.

31- Na verdade e com relevância, verifica-se o vertido no art. 28° da Lei 58/2008 quanto à acumulação com funções privadas.

32- Tal acumulação só é proibida quando "concorrentes ou similares com as funções públicas desempenhadas e que com estas sejam conflituantes".

33- É apenas e nesta vertente que também o Recorrente discorda da douta Sentença, porquanto o serviço de trolha que corresponde ao executado para remoção do sifão: - não cabe nas funções do arguido; - não cabe nas atribuições das Águas do Porto; - pode ser realizado por qualquer pessoa a quem o proprietário do imóvel atribuir a tarefa.

34- Quanto ao número 3 do art. 28º, bastaria a característica de "permanente ou habitual" para ser impossível aplicar ao arguido a previsão da norma.

35- O mesmo se diga pelos argumentos abusivos autonomamente quanto à inaplicabilidade do artigo 28° nº 4, nas suas múltiplas alíneas, que de resto focam todos os parâmetros já desenvolvidos.

36- É falsa, como já referido, a conclusão de que o arguido/Recorrente exerça funções de ajudante de piquete.

Terminou o arguido o seu recurso requerendo a sua absolvição da prática do crime de que vem acusado, revogando-se, “in totum”, a sentença.

*O Ministério Público apresentou resposta, de cujas contra-alegações extraiu as seguintes conclusões: - a sentença recorrida não enferma de qualquer insuficiência, contradição ou de erro, tendo sido correta a apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, porque efetuada de acordo com as regras e princípios processuais aplicáveis; - a decisão no sentido da condenação do arguido, ora recorrente, resultou, assim, da apreciação crítica e conjugada de todos os elementos de prova, objetivos e subjetivos, produzidos em audiência de julgamento, sendo a mesma lógica e consentânea com as regras da experiência comum; - nenhum elemento de prova produzido em audiência de julgamento impunha decisão diversa da recorrida, pelo que inexiste fundamento para a alteração da mesma por via de recurso; pelo que - deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão do Tribunal recorrido nos seus precisos termos.

*Cumpre decidir.

*II – FUNDAMENTAÇÃO O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Após transcrever a parte da sentença em que se fixou a matéria de facto e a respetiva motivação probatória, importa abordar as principais questões a decidir que são as de saber se: ● a sentença recorrida enferma de erro de julgamento da matéria de facto; ● a sentença recorrida fez uma incorreta aplicação do direito aos factos.

*A) A matéria de facto e sua motivação segundo a sentença recorrida (transcrição) “2.1) Factos provados: Discutida a causa e com interesse para a mesma provou-se que: 1) Desde 24 de Outubro de 2006, o arguido encontra-se na situação de requisição à Câmara Municipal do Porto, a desempenhar funções de motorista na CMPEA-Empresa de Águas do Município do Porto, E.E.M., cujo capital social foi totalmente realizado pela Câmara Municipal do Porto (regime do sector empresarial do Estado), e, como tal, sujeito ao regime de contrato de trabalho em funções públicas, e ao abrigo do regime de cedência de interesse público, nos termos do disposto no art. 58º da Lei n.° 58/2008, de 11 de Setembro.

2) Nos termos do Código de Conduta da CMPEA-Empresa de Águas do Município do Porto, E.E.M., na vigência do vínculo laboral, e salvo expressa autorização do Conselho de Administração, nenhum colaborador poderá prestar serviços profissionais a terceiros, sempre que estas atividades ponham em causa o cumprimento dos seus deveres de responsabilidade, transparência, lealdade, independência, profissionalismo, confidencialidade, zelo e eficiência das responsabilidades que lhe sejam cometidas (cf. arts. 3°/ 4°/ 6° do Código de Conduta, Despacho nº 237/RH/2009/ datado de 10.12.2009/ e Despacho nº...

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