Acórdão nº 64/09.1TBTMR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 17 de Setembro de 2013

Magistrado ResponsávelTELES PEREIRA
Data da Resolução17 de Setembro de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra I – A Causa 1.

Em 18 de Janeiro de 2009[1] O… (A. e Apelado neste recurso) demandou A… e mulher, P… (RR. e Apelantes), afirmando ter “emprestado” a estes dois RR, em função de uma relação pessoal de amizade, a quantia global de €42.500,00, isto em três entregas (entre Julho de 2004 e Junho de 2005), respectivamente de €12.500,00, €25.000,00 e €5.000,00, comprometendo-se os destinatários desses empréstimos a devolverem metade dos montantes (€21.500,00) até ao fim do ano de 2005 e o restante até ao fim de 2006. Nada devolveram os RR., afirma-o o A., fazendo descaso das insistências deste para esse efeito.

Ora, desrespeitando estes mútuos a forma legal prevista no artigo 1143º do Código Civil (CC)[2], já que não foi empregue escritura pública nem sequer utilizada a forma escrita simples (terão sido sempre mútuos verbais), tratar-se-iam de mútuos nulos, devendo, em função dessa incidência, ser restituído tudo o que prestado fora (artigo 289º, nº 1 do CC).

É, enfim, o que o A. pretende nesta acção: que seja declarado nulo o mútuo (os mútuos) e que os RR. sejam condenados a devolver os €42.500,00, com juros contados desde a respectiva citação.

1.1.

Os RR. impugnaram esta pretensão e os respectivos fundamentos referenciando os valores transferidos para eles pelo A. à transmissão a este de posição na sociedade “L…, Lda.”.

1.2.

Em julgamento foi a acção decidida pela Sentença de fls. 290/299 – esta constitui a decisão objecto deste recurso –, julgando procedente, “por provada” (foi a expressão empregue pelo Senhor Juiz a quo), condenando-se os RR. a satisfazerem ao A. a quantia de €42.500,00 e juros nos termos peticionados. Fundou-se esta procedência no instituto do enriquecimento sem causa – questão não invocada por qualquer das partes ao longo do processo –, fazendo o Tribunal decorrer da indemonstração da tese do A. e da indemonstração da tese dos RR. o desencadear dessa obrigação de restituir, nos termos do artigo 473º do CC[3].

1.3.

Inconformados, recorreram os RR., concluindo o seguinte a rematar a motivação do recurso: “[…] II – Fundamentação 2.

Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelos Apelantes – transcrevemo-las no item 1.3.

supra – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[4]. Com efeito, fora das conclusões só valem, nesta sede, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

O fundamento do recurso resume-se a saber se o instituto do enriquecimento sem causa, como observámos não invocado pelo A. na acção (nem sequer a título subsidiário[5]), face à indemonstração em paralelo da tese do A. e da tese dos RR. – face, pois, a um non liquet total – seria convocável, como considerou o Senhor juiz a quo, como verdadeira regra residual de decisão face à dita indemonstração de qualquer das teses em confronto na acção. Poderíamos reduzir tudo, assim, ao controlo da aplicação do enriquecimento sem causa na hipótese vertente, a saber: quando alega o A. um mútuo (e este é nulo por falta de forma), como causa da transferência patrimonial, contrapondo o R. que a transferência patrimonial entre os dois ocorreu, por outra causa, concretamente que teve como causa o pagamento do valor resultante da execução de um contrato (aqui de uma cessão de quotas), sendo que nem a versão do A. nem a versão do R. logram demonstração – daí o indicado non liquet total.

Note-se que o Tribunal a quo entendeu que a não prova de qualquer destas versões conduziria à aplicação do artigo 473º do CC, consequentemente ao desencadear da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa. Existe, todavia, um problema com esta decisão – é o problema que se coloca neste recurso –, consistente no postergar, substituída pelo enriquecimento sem causa, da chamada regra de decisão contida no artigo 342º, nº 1 do CC, enquanto norma vocacionada para resolver as hipóteses de non liquet quanto aos fundamentos da acção configurada pelo A.: “[à]quele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado”. É este descaso, feito pela decisão recorrida sem qualquer explicação, da regra de decisão decorrente da chamada teoria das normas (do artigo 342º do CC)[6] que aqui nos perturba e interpela vivamente, exigindo um aprofundamento argumentativo da questão, testando a correcção da linha decisória seguida pela primeira instância.

Antes de mais, porém, importa reter os factos provados (os factos considerados pela primeira instância e que aqui ninguém contesta).

2.1.

Ora, esses factos considerados provados na instância precedente foram os seguintes: “[…] 2.2.

Preambularmente sublinhamos que esta questão – o assumir do enriquecimento sem causa como uma espécie de regra de decisão a aplicar em situações de non liquet total – já foi tratada pelo ora relator, com uma distinta formação da presente, no Acórdão desta Relação de 04/12/2007[7] (que na subsequente argumentação seguiremos de perto em muitos aspectos). Tratava-se nesse caso da alegação pelo autor de ter ocorrido um mútuo e da contraposição pelo réu de ter existido, isso sim, uma doação, não se provando nem uma nem outra das hipóteses[8].

Neste caso, o confronto entre as duas versões não envolve a alegação pelo R. de uma doação, mas antes de um negócio oneroso referido, ao que parece, a responsabilidades emergentes para o A. da cessão das quotas de uma sociedade, sendo que existe uma especificidade na doação, que tem expressão na essência significativa do brocardo latino donatio non praesumitur[9], no sentido em que “[o]s negócios jurídicos gratuitos, no confronto com os negócios jurídicos onerosos, manifestam alguma ‘fraqueza’, consubstanciando posições objecto de uma protecção menos intensa, que tenderá a ceder face a negócios onerosos incidentes sobre o mesmo bem”[10].

Todavia, a incompatibilidade irresolúvel entre a existência – rectius, a alegação da existência – de um mútuo e a contraposição a este de um negócio oneroso que exclui a obrigação de devolução do mesmo que foi prestado que caracteriza o mútuo, não deixa de trazer à colação, sem o acrescento interpretativo da tendencial prevalência do negócio oneroso sobre o gratuito, essa incompatibilidade estrutural e, consequentemente, a necessidade de recorrer, face à indemonstração de qualquer das versões contrapostas, a uma regra de decisão que permita ultrapassar o tal non liquet total, no quadro referencial da obrigação de julgar que se impõe aos juízes, mesmo em ambiente de dúvida final insanável (artigo 8º, nº 1 do CC).

Foi neste quadro – quer-nos parecer – que o Senhor Juiz a quo recorreu aqui ao enriquecimento sem causa, substituindo-o à regra de decisão que, ancorada no nº 1 do artigo 342º do CC, o levaria a ficcionar como demonstrada a tese dos RR., por indemonstração da tese do A.

[11], fazendo aquela prevalecer sobre a tese do mútuo invocada pelo A., prevalência esta que conduziria, neste caso, a manter nos RR. a deslocação patrimonial efectuada pelo A., rectius a conservar o status quo ante à acção visado alterar pelo A.

2.2.1.

Confronta-nos assim a decisão apelada com o sentido teleológico profundo de um instituto, o enriquecimento sem causa, de grande relevância na prática dos tribunais, dotado de uma vasta história – remonta ao direito romano[12] –, sendo indicado por Claus-Wilhelm Canaris como “princípio geral de direito”[13], sendo que o nosso Código Civil o enuncia, na sugestiva expressão de Luís de Menezes Leitão, “[…] como um princípio em forma de norma […]” no artigo 473º, nº 1[14]. Na doutrina portuguesa constitui obra de referência no tratamento do enriquecimento sem causa o trabalho deste último Autor, “O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil”[15], que seguiremos de perto nas subsequentes considerações.

Contém o mencionado artigo 473º, nº 1 uma cláusula geral cuja amplitude conduziria, na base da sua utilização indiscriminada, ao efeito perverso de...

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