Acórdão nº 207/10.2GAPMS.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 26 de Junho de 2013

Magistrado ResponsávelBR
Data da Resolução26 de Junho de 2013
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Precedendo conferência, acordam na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

* I.

Relatório.

1.1. No decurso da audiência aprazada nos autos supra epigrafados, a M.ma Juiz que à mesma presidia proferiu despacho cujo (parcial) teor passamos a reproduzir: «A arguida vem acusada da prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. a), ambos do Código Penal contra as ofendidas A...

(assistente), B...

(assistente), C...

, D...

, E...

, F...

e G...

.

As ofendidas, no início da presente audiência de julgamento declararam desistir das queixas apresentadas contra a arguida, a qual, por sua vez, declarou não se opor às desistências apresentadas.

O Ministério Público, porém, opõe-se à homologação das desistências de queixa apresentadas, fundamentando tal oposição com a natureza pública do crime de ameaça agravada.

A questão a decidir refere-se a saber se o crime de ameaça agravada p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. a) do Código Penal reveste natureza procedimental pública ou semi-pública, em ordem a ajuizar da atribuição ou não de eficácia extintiva do procedimento criminal dos autos à desistência de queixa formulada pelas ofendidas.

A promoção da acção penal rege-se pelo princípio geral da oficialidade ou publicidade, consagrado pelo art.º 48.º do Código de Processo Penal, tendo o Ministério Público legitimidade para promover ao processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º.

O art.º 49.º do Código de Processo Penal tem por epígrafe «Legitimidade em procedimento dependente de queixa» e o seu n.º 1 é do seguinte teor: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.” Dos preceitos legais agora citados pode extrair-se a regra segundo a qual a legitimidade do Ministério Público para a promoção da acção penal só depende de queixa do ofendido, ou de outra pessoa a quem a lei reconheça o direito de a apresentar, nos casos em que exista disposição legal expressa que exija o preenchimento de tal requisito.

Nos demais casos, e abstraindo agora das situações em que é exigida acusação particular, a promoção do procedimento criminal tem carácter estritamente público.

O n.º 2 do art.º 116.º do Código Penal dispõe: “O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada.” Contudo, a desistência de queixa, sem oposição do arguido, só tem por efeito extinguir o procedimento criminal nos casos em que lei condicione a promoção deste à apresentação daquela, pois, relativamente aos crimes de natureza procedimental pública, a desistência de queixa é ineficaz.

É, assim, da existência de uma disposição legal, que condicione a promoção do procedimento pelo crime de ameaça agravada, por que a arguida vinha acusada, ao exercício do direito de queixa, que iremos averiguar.

O art.º 153.º do Código Penal é do seguinte teor: “1. Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.

  1. O procedimento criminal depende de queixa.” Por seu turno, o art.º 155.º do Código Penal preceitua que: “1. Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; ou c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do art.º 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; d) Por funcionário com grave abuso de autoridade; o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do art.º 154.º. (…)”.

    O art.º 154.º do Código Penal ocupa-se da tipificação do crime de coacção, dispondo o seu n.º 4 que o procedimento criminal depende de queixa, quando a conduta tipificada e declarada punível tenha lugar entre «cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas de outro ou mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges».

    Na redacção do Código Penal imediatamente anterior à Lei n.º 59/07 de 04.09, o único caso de agravação qualificativa do crime de ameaça correspondia à hipótese agora prevista na al. a) do n.º 1 do art.º 155.º do Código Penal da versão actual e vinha previsto no n.º 2 do art.º 153.º do Código Penal, cujo n.º 1, tal como no texto vigente, opera a definição do tipo básico desse crime, figurando neste artigo um nº 3 cujo conteúdo corresponde ao do n.º 2 actual.

    Ora, conforme escreve Pedro dos Anjos Frias (em “Por quem dobram os sinos?” A perseguição pelo crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido?! Um silêncio ruidoso, Revista Julgar n.º 10, Janeiro-Abril de 2010, pág. 39-57), com cuja exposição se concorda e reitera, pelo que se reproduz o essencial nos seguintes termos: (…) assinala-se em primeiro lugar que o artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal, não define o que seja uma ameaça, ou uma coacção, tipicamente relevante (s). Para a actuação da reacção penal mais gravosa prevista no artigo 155.º Código Penal, será sempre necessário o preenchimento de qualquer dos tipos matriciais – ameaça ou coacção, com os respectivos recortes típicos insertos nos artigos 153.º, n.º 1, e 154.º, n.º 1, ambos do Código Penal. (…) Desde logo, convém lembrar que os tipos matriciais ou fundamentais que o artigo 155.º do Código Penal, convoca para a sua própria actuação não possuem a mesma natureza no que concerne ao impulso processual subsequente à notícia do crime.

    De facto, o crime de ameaça possui natureza semipública enquanto que o crime de coacção, actualmente, só a possui nas situações em que intercedem especialíssimas relações entre o agente e a vitima, vd. artigo 154 n.º 4, do Código Penal. (…) Ora, em minha opinião, esta dualidade de regimes no que concerne ao impulso para o exercício da acção penal em relação aos crimes de ameaça e de coacção, que sempre se manteve e ainda hoje mantém, não pode ser escamoteada. Antes me parece que deverá constituir um horizonte compreensivo a que se deverá apelar para uma correcta resolução das questões em análise. (…) Sublinha-se, ainda, em segundo lugar, que o anterior n.º 2 do artigo 153.º do Código Penal, onde se prescrevia que «Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos. O agente é punido…» continuava a carecer de queixa.

    Ora, perguntamos, esta previsão já existente seja no crime de ameaça, seja no crime de coacção, pode, por força de uma transferência, tornar totalmente irrelevante a vontade da vítima? Mas então que razões válidas existem para tanto? Que motivos foram invocados? (…) Não as vislumbro. Tanto mais que se mantêm as implicações de politica criminal conexas com a exigência de queixa e a que acima me referi.

    Não é pelo simples facto de a sanção ser mais grave que se poderá perseguir criminalmente a ameaça, sem mais, contra a vontade expressa da vítima. (…) Assim, retira-se da Exposição de Motivos que o legislador pretendeu alargar à ameaça as três hipóteses que já ocorriam no anterior crime denominado «coacção grave» pois que a outra hipótese, a do crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, já estava expressamente prevista na anterior redacção do artigo 153.º, n.º 2, do Código Penal.

    E curiosamente, ou não, escolheu para as três novas hipóteses a mesma moldura penal anteriormente prevista para a ameaça grave. Ou seja, dois anos de prisão ou multa até 240 dias, vd. o artigo 153.º, n.º 2, na redacção anterior à reforma do Verão de 2007.

    (…) Em minha opinião, é de concluir que o legislador arrumou as mesmas circunstâncias que pretendia fazer valer para ambos os tipos de crime em uma só disposição: o novo artigo 155.º que tem a sugestiva epígrafe: «Agravação». (…) Parece-me, salvo o devido respeito, que se limitou a pôr tudo no mesmo saco, equiparando realidades material e originariamente distintas. (…) Em conclusão, em minha opinião, por meio da nova redacção do artigo 155.º, n.º 1, corpo, do Código Penal, o mais que se lobriga é uma arrumação sistemática de um mesmo conjunto de circunstâncias que apenas relevam como circunstâncias agravantes e não constituem, de per si, crime autónomo ou independente, no que à ameaça concerne.

    Tudo aponta para um alargamento da tipicidade no que concerne ao conteúdo da ameaça grave para efeitos de punição, isto é, como se tais novas circunstâncias pudessem ter sido arrumadas ao lado da primitiva que existia na anterior da redacção do n.º 2 do artigo 153.º do Código Penal (prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos de prisão) e para todas valendo a disposição do então n.º 3. (…).

    Neste sentido, e concluindo, considerando, por um lado, que a inclusão da exigência de queixa não é um capricho mas obedece ou está fundada em razões de política-criminal, não se vislumbram, nem foram referidas na respectiva Exposição de motivos da alteração legislativa em causa quaisquer razões de política criminal para não atribuir qualquer relevância à vontade da vítima quando esteja em causa o crime de ameaça punível pela conjugação dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, do Código Penal...

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