Acórdão nº 1267/06.6TBAMT.P2 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 19 de Dezembro de 2012

Magistrado ResponsávelLUÍS LAMEIRAS
Data da Resolução19 de Dezembro de 2012
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Recurso de Apelação Processo nº 1267/06.6TBAMT.P2---. Apelantes - B… e esposa - C…, residentes na … nº …, .º dt.º, em Vila Nova de Gaia;---. Apelados - D…, residente no …, lote .., …, em Amarante; - E… e esposa - F… , residentes na Rua … nº .., em Oeiras; - G… e marido - H…, residentes na Rua Rodrigues Lapa nº 3, 2º dt.º, Amora, no Seixal.

--- SUMÁRIO: I – A falta de consciência da declaração negocial, que previne o artigo 246º do Código Civil, é aquela que supõe um declarante discernido, capaz de entender o sentido dela mas que, todavia, se não apercebe (não tem a consciência) de que a está a emitir; II – Diferente dessa é a hipótese de incapacidade acidental, em que exactamente o declarante se acha, por qualquer causa, privado daquele discernimento, da aptidão para compreender o sentido da declaração (artigos 257º, nº 1, e 2199º do Código Civil); III – A expressão da vontade do testador tem de revestir uma forma cumprida e clara, quer dizer, inequívoca, sem permitir suspeita de mínima dúvida acerca de qual foi a sua vontade segura; sendo o negócio nulo quando assim não aconteça (artigo 2180º do Código Civil); IV – Se a declaração negocial do testador é motivada pelo receio de um mal de que este haja sido ameaçado com o fim de a obter, e essa ameaça comporta um juízo de reprovação à face da ordem jurídica, ocorre coacção moral e o negócio é anulável (artigos 255º e 2201º do Código Civil); V – Em qualquer das hipóteses de vício capaz de corromper o negócio jurídico testamentário, enumeradas de I – a IV –, é essencial a substanciação mediante factos de cada uma das fatti specie respectivas; sendo ónus do interessado em obter a respectiva invalidade a alegação desses factos e a sua prova consistente (artigos 342º, nº 1, do Código Civil e 516º do Código de Processo Civil); VI – Sem embargo de uma concludente prova contrária, devem em regra ser considerados como provados os factos que sejam percepcionados pelo notário e, como tal, atestados no acto público notarial (artigos 371º, nº 1, 372º, nºs 1 e 2, e 347º, do Código Civil); VII – O princípio da livre apreciação da prova, que alicerça o julgamento da matéria de facto, sustenta-se em critérios racionais e objectivos, em juízos de ilações e inferências razoáveis, mas sempre de mera probabilidade (artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil); e conduz a um juízo positivo de prova quando, em face dos instrumentos disponíveis, do seu conteúdo, consistência e harmonia, se afigure aceitável à consciência de um cidadão medianamente informado e esclarecido, que a realidade por eles indiciada já se possa ter como efectivamente assumida; VIII – A avaliação dos depoimentos das testemunhas, realizada de acordo com os ditames referidos em VII – (artigo 396º do Código Civil), deve assentar em dois pólos, via de regra; de um lado, na razão de ciência de evidenciada (artigo 638º, nº 1, final, do Código de Processo Civil); do outro, no maior ou menor afastamento (ou comprometimento pessoal) que, com a controvérsia em discussão, se afigure existir (artigo 635º, nº 1, final, do Código de Processo Civil); sendo estes factores que, além do mais, permitem escrutinar o nível da credibilidade que lhes pode ser conferido.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I – Relatório 1. A instância da acção.

1.1.

C… e esposa C… propuseram acção declarativa,[1] em forma ordinária, contra (1.º) D…, (2.º) E… e esposa F… e (3.º) G… e marido H…, pedindo (I) que se declare nulo o testamento celebrado em 1 de Fevereiro de 2000 por I… que não tinha à data da sua outorga consciência de ter emitido uma declaração negocial com efeitos jurídicos ou, subsidiariamente, que se declare nulo por ter sido outorgado sob coacção moral e em qualquer caso que se declare a falsidade desse testamento por não traduzir a realidade do que se terá passado ou percepcionado pela testadora e (II) que se declare nulo o testamento celebrado no mesmo dia por J… que não tinha à data da sua outorga consciência de ter emitido uma declaração negocial com efeitos jurídicos ou, subsidiariamente, que se declare nulo por ter sido outorgado sob coacção moral aproveitando-se a especial fragilidade do testador.

Em síntese, o que alegam é que o casal I… e J…, já falecidos, tiveram os filhos B…, D… e E…; e que aqueles outorgaram testamentos instituindo herdeiros da totalidade da quota disponível os filhos D… e E…. Ora, à data da outorga a I… estava incapacitada de entender o sentido da declaração, encontrando-se senil, abalada mentalmente e sem ter consciência perfeita das coisas; atirava coisas pela janela, puxava cortinados sem razão, despia-se, referia-se ao marido dizendo que ele o não era, cantava e dançava pelos caminhos, gritava, falava com as flores; sendo sabido que já não estava em juízo perfeito. Ademais, ouvia mal e carecia de acompanhamento; tudo do conhecimento de amigos e familiares. Por outro lado, não era crível que quisesse ter preterido o filho B…, a quem sempre manifestou carinho especial e a quem se referia afectuosamente; sendo corrente, entre familiares e amigos dos falecidos, o espanto perante o teor dos testamentos. Acontece é que a I… passou a depender completamente da filha D…, só se compreendendo o testamento na sequência de actuação desta; que terá preparado toda a escritura e conduzido a mãe ao cartório; esta, contudo, sem poder ter consciência de aí emitir declaração juridicamente vinculante. Em suma, o testamento enferma de nulidade absoluta ou, ao menos, de anulabilidade (artigos 246º e 2199º do Código Civil). A vontade verbal da testadora só pode ter sido emitida em termos monossilábicos, de sim e não, e nunca ter traduzido uma vontade esclarecida; ocorrendo também por isso nulidade (artigo 2180º do Código Civil). O testamento está viciado de falsidade já que a declaração que contém não traduz a realidade. Mas mais; ao menos, houve pressão ilegítima da filha D…; o que consubstancia coacção moral; e por isso anulabilidade. De seu turno, também o J… estava debilitado em termos mentais; e sem poder entender e querer quando celebrou o testamento; que assim é também nulo (artigo 246º). Também o pai nutria excelente relação com o filho B…, de grande carinho e consideração; e muito em especial em relação a esse concreto filho; não sendo crível que ele quisesse preteri-lo em benefício dos irmãos; por isso, não teve por certo a consciência de ter emitido a declaração que ficou a constar no testamento ou, ao menos, não tinha livre exercício da sua vontade. Por fim, a filha D… fizera saber que cuidava dos pais, mas que estes a haviam de compensar patrimonialmente; e há-de ter sido o aproveitamento da especial situação de dependência dos testadores a justificar a outorga dos testamentos. Mas a verdade é que os pais nutriam mais afeição pelo B… do que pela D…; sendo comuns as discussões desta com o pai; houve aproveitamento da fraqueza e debilidade dele para o levar a outorgar o acto; o que acarreta anulabilidade, por ter sido feito sob pressão ilegítima.

1.2.

Os réus contestaram a acção. Os testadores não foram alvo de processo de interdição por anomalia psíquica; por isso, não são nulos os testamentos. A questão é meramente de anulabilidade; a qual tem um prazo de caducidade de dois anos; há muito ultrapassado. Os testadores sempre manifestaram publicamente gratidão à D… e ao E… por serem os únicos filhos que os auxiliavam e acarinhavam; e comentaram o facto do testamento, justificado por essa gratidão. O B… soube do testamento; contactou pessoas para serem testemunhas no processo para anulação dos actos; e deixou passar mais de dois anos. Há caducidade da acção. Por outro lado, ambos os testadores estavam de perfeito juízo; a I… totalmente lúcida e consciente, com boa imagem e sem problemas de psiquiatria; o J… de igual modo sempre consciente, lúcido e auto-suficiente, sem doenças graves ou incapacitantes (ouvia apenas um pouco mal); ambos outorgando os testamentos de livre e espontânea vontade; o que fizeram possuídos de normal capacidade de avaliar as consequências e de ponderar os interesses. Deslocaram-se pelos próprios meios ao cartório notarial e aí exprimiram por palavras de forma clara e inequívoca as suas vontades, no pleno gozo das faculdades, com capacidade de querer e entender, e em termos que não deixaram ao notário a mais ligeira dúvida sobre a sanidade de espírito de ambos. Em suma, procede a excepção e os réus devem ser “absolvidos da instância”; ou assim se não entendendo a acção improcede “absolvendo-se os réus do pedido”.

1.3.

Os autores apresentaram réplica. No essencial, para acentuar que a acção é de nulidade, a qual só caduca ao fim de dez anos (artigo 2308º, nº 1, do Código Civil), que ainda não correram; mas que, ainda assim não fosse, a acção estaria em prazo. Os testamentos foram feitos em segredo; o carinho especial era nutrido pelo filho B…; os testadores muitas vezes exasperavam com a D…; e era com felicidade que recebiam as visitas dos autores; a estes nunca foram falados os testamentos; o processo sucessório foi tratado na íntegra pela D…; os autores só recentemente souberam dos testamentos, há muito menos de dois anos. Em suma, é improcedente a excepção que foi deduzida.

1.4.

A instância declaratória desenvolveu-se; e com vicissitudes.

Os autores foram convidados a aperfeiçoarem a petição; o que fizeram. E os réus pronunciaram-se impugnando a matéria aperfeiçoada.

Foi julgada a matéria de facto e proferida a sentença final; mas aquela foi anulada por acórdão de 20 de Dezembro de 2011 (v fls. 477 a 493).

Repetiu-se o julgamento anulado; e produziu-se outra sentença (v fls. 519 a 525), esta a considerar que os autores não provaram os factos constitutivos do direito invocado; dessa forma a julgar prejudicado o conhecimento da excepção da caducidade; por fim, a julgar a acção improcedente e a absolver os réus dos pedidos formulados pelos autores.

  1. A instância da apelação.

    2.1.

    Os autores inconformaram-se; e interpuseram recurso.

    Elaboraram alegação; que finalizaram...

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