Acórdão nº 4337/11.5TAMTS.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 16 de Janeiro de 2013

Magistrado ResponsávelERNESTO NASCIMENTO
Data da Resolução16 de Janeiro de 2013
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Processo comum singular 4337/11.5TAMTS do 4º Juízo Criminal de Matosinhos Relator - Ernesto Nascimento.

Adjunto – Artur Oliveira Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório I.1. Remetido o processo à distribuição, foi proferido despacho a rejeitar a acusação pública, por manifestamente infundada, em virtude de os factos nela descritos não constituírem o imputado crime de burla.

  1. 2. Inconformado com o assim decidido, interpôs recurso o Magistrado do MP, pedindo a revogação de tal despacho e a sua substituição por outro que receba a acusação pública e designe data para audiência de julgamento, sustentando as seguintes conclusões: 1. o Mm° Juiz a quo considerou na sua douta decisão de fls. 66 e ss. que os factos descritos na acusação integrariam a comissão de um crime de emissão de cheque sem provisão, e nenhum outro, e, não estando previstos os elementos típicos do crime, rejeitou-a; 2. mais entendeu que, mesmo que não houvesse uma relação de especialidade entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o crime de burla, a acusação seria sempre de rejeitar, pois que, da sua leitura, não resulta que o arguido tenha actuado com "astúcia", de forma a obter uma vantagem patrimonial a que não tinha direito; 3. no que respeita ao primeiro argumento, sustenta-se que, mesmo que haja uma relação de especialidade entre o crime de emissão de cheque sem provisão, e, por exemplo, o de falsificação e o de burla, o facto de se afastar a punição pelo crime de emissão de cheque sem provisão não impede o conhecimento dos crimes consumidos, desde que estejam descritos os seus elementos típicos; 4. mesmo afastada a punibilidade pelo crime de emissão de cheque sem provisão, resta a punição pelo crime de burla, pois o ofendido B… fez uma disposição patrimonial que de outro modo não faria, convencido pelo arguido C… de uma falsa aparência de realidade — a boa cobrança do cheque, incorrendo assim na prática do crime de burla pelo qual vinha acusado; 5. assim, rejeitar a acusação pública com os fundamentos que os factos ali descritos mantinham uma relação de especialidade com o crime de burla, não verificados que estavam os requisitos para o crime de emissão de cheque sem provisão, e, mesmo que assim não se entendesse, que não configuravam a prática de qualquer crime, designadamente o de burla, constitui uma violação dos artigos 217°/1 C Penal, e 311°/1 C P Penal.

  2. 3. Na 1.ª instância não foi apresentada qualquer resposta.

  3. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se o Representante do MP no sentido de o recurso não merecer provimento, pois que sendo certo que se não verifica, desde logo, o crime de emissão de cheque sem provisão - uma vez que o cheque foi post-datado e não foi sequer apresentado e, por isso não se verificou a sua falta de pagamento - da mesma forma também entende, por esta derradeira razão, que se não verifica o crime de burla, faltando o elemento prejuízo patrimonial (ou mesmo que o ofendido foi pelo arguido ludibriado) e porque a própria acusação refere que o cheque foi entregue para garantia do empréstimo que o ofendido concedeu ao arguido, valendo então, não como meio de pagamento, mas sim e, tão só, como documento particular de divida, assentando, de resto, a acusação numa hipótese – de que o cheque não podia ser pago porque não era valido – conforme informação dada ao ofendido, quando intentou deposita-lo.

    No cumprimento do estatuído no artigo 417º/2 C P Penal, nada foi acrescentado.

    Teve lugar o exame preliminar, onde se decidiu nada obstar ao conhecimento do recurso.

    Seguiram-se os vistos legais.

    Foram os autos submetidos à conferência.

    Cumpre agora apreciar e decidir.

  4. Fundamentação III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.

    No caso presente, de harmonia com as conclusões apresentadas, suscita o recorrente para apreciação, tão só, a questão de saber se os factos descritos na acusação são susceptíveis de integrar o tipo legal de burla.

  5. 2. Para uma melhor elucidação da questão subjacente ao presente recurso, importa, desde já, recordar, III. 2. 1. O teor da acusação pública: “em Fevereiro de 2010, o arguido C… abordou o ofendido B…, nesta cidade, pedindo-lhe um empréstimo de € 1.000,00, o que lhe foi concedido.

    Em troca, e para garantir a boa cobrança daquele valor, o arguido entregou ao ofendido o cheque n.° ………, da conta de que era titular no D…, com o n.° ……….., no valor de € 1.000,00 e pós datado para o dia 24/03/2011.

    Sucede que o arguido nunca tencionou liquidar aquele cheque, nem o valor mutuado, porquanto o cheque que utilizou já não tinha validade, o que o arguido sabia, querendo assim locupletar-se com o valor mutuado, o que conseguiu.

    Na verdade, quando o ofendido intentou depositar o dito cheque, em Agosto de 2011, a fim de se cobrar da quantia mutuada, tal depósito foi-lhe negado, pois foi informado de que o cheque já não tinha validade há mais de 2 anos, o que o arguido bem sabia, pois que não movimentava aquela conta naquele período.

    O arguido C… agiu livre e lucidamente, convencendo o ofendido a emprestar-lhe a quantia em dinheiro, entregando-lhe cheque como garantia daquele empréstimo, que sabia não ter validade, assim criando erro na vontade daquele, que, assim, fez uma disposição patrimonial.

    O arguido sabia que assim agindo incorria na prática de um crime punido pela lei penal.

    Pelo exposto, e atendendo à factualidade típica descrita, fica o arguido C…, incurso na prática de, em autoria material e na forma consumada, um crime de burla simples, p. e p. pelo artigo 217° C Penal”.

  6. 2. 2. O despacho recorrido.

    “O Tribunal é competente.

    Da acusação manifestamente infundada: O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido C…, imputando-lhe a prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217° C Penal.

    Ora, a acusação do Ministério Público ou do assistente tem, conforme resulta dos artigos 283°/3 alínea b) e 285º/3 C P Penal, de narrar os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, sob pena de nulidade e rejeição da acusação, nos termos do artigo 311°/2 alínea a) e n.° 3 alínea d) C P Penal.

    Aliás, em obediência aos princípios basilares do processo penal, a solução legal referida para a acusação que não contenha factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos típicos de um crime imputáveis ao arguido não pode ser outra, na medida em que a acusação, seja pública, seja particular, fixa o objecto do julgamento, delimitando a actividade de cognição a desenvolver pelo tribunal, de tal forma que, nos termos do artigo 379°/1 alínea b) C P Penal, é nula a sentença que, entre outros, condene o arguido por factos diversos dos descritos na acusação.

    Deste modo, quando os factos relatados na acusação não integram os elementos objectivos e subjectivos de um tipo criminal ou quando não são imputados factos que constituam crime, a prolação de sentença por outros factos que, por si ou conjugados com aqueles, integrassem um crime traduziria uma alteração substancial dos factos, conforme decorre do disposto no artigo 1° alínea f) C P Penal, o que, consequentemente, determinaria a nulidade dessa decisão (artigo 379°/1 alínea b) C P Penal).

    Neste enquadramento, não obstante a existência de entendimento em sentido contrário, entende o Tribunal que a acusação não relata factos adequados a integrar a prática do crime pelo qual acusa o arguido, na perspectiva em que, mesmo provando-se todos os factos alegados, a decisão seria no sentido da absolvição do arguido.

    Concretizando: o entendimento conclusivamente afirmado no sentido de os factos da acusação não permitirem, mesmo que provados, a condenação do arguido prende-se, por um lado, com a concepção jurídica da punição do concurso de crimes e com a interpretação da lei segundo as regras legais previstas no artigo 9° C Civil, e, por outro lado, com a própria insuficiência da matéria de facto alegada para o preenchimento de todos os elementos típicos do crime de burla pelo qual o arguido é acusado.

    Para o efeito, constitui um elemento essencial verificar que o crime de burla imputado ao arguido respeita, no essencial, ao alegado facto de o arguido ter emitido e entregue ao queixoso um cheque pós-datado que não tinha validade, com o objectivo de receber do queixoso uma quantia em empréstimo.

    Acontece que, apesar de, em abstracto, os factos em causa poderem traduzir pelo menos alguns dos elementos típicos que o artigo 217° C Penal prevê, a verdade é que tal não basta para que a conduta imputada seja criminalmente punida, pois que a ordem jurídica pode afastar tal punição, tal como sucede no caso em apreço, como a seguir será explicitado, convocando-se, ainda que apenas como linha de orientação, a teoria do concurso de crimes e o princípio da especialidade.

    O concurso de crimes encontra tratamento legal no artigo 30° C Penal, onde se dispõe, no que ora releva, que o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos.

    "O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

    Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração — concurso impróprio, aparente ou unidade...

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