Acórdão nº 1584/10.0TFLSB.L1-5 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 10 de Janeiro de 2012

Magistrado ResponsávelNETO DE MOURA
Data da Resolução10 de Janeiro de 2012
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


I – Relatório Por decisão de 29.07.2010, “ISP – Instituto de Seguros de Portugal” (abreviadamente, ISP) aplicou a “Companhia de Seguros A..., S.A.”, melhor identificada nos autos, a coima única de € 44 890,00 (quarenta e quatro mil oitocentos e noventa euros), resultante do cúmulo jurídico de 69 coimas parcelares de € 1 500,00 cada uma, pela prática, em concurso efectivo, de outras tantas contra-ordenações previstas e puníveis pelo artigo 36.º, n.º 1, al. a), do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

A arguida impugnou judicialmente tal decisão e, remetido o processo ao Ministério Público junto do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, que o tornou presente ao juiz para apreciação do recurso interposto, admitido este, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que, concedendo total provimento ao recurso, absolveu a arguida/recorrente.

Foi a vez do ISP manifestar o seu inconformismo, interpondo recurso dessa decisão absolutória para este Tribunal da Relação e concluiu a sua peça recursiva nos seguintes termos (em transcrição integral): I. “O elemento central da sentença de absolvição recorrida consistiu no seguinte raciocínio: a prova de que a Arguida teria criado um sistema de gestão de processos com determinadas características, bem como a ausência de alegação e prova das concretas causas que estariam na origem de cada uma das 69 infracções permitiriam inferir que a Arguida A... teria actuado diligentemente, ou, pelo menos, permitiriam criar uma dúvida razoável quanto à actuação negligente da Arguida. Neste último caso, não teria chegado a provar-se a sua negligência e consequentemente esta deveria ser absolvida.

  1. A pedra de toque da sentença recorrida assenta nas regras de experiência comum que estão na base da inferência factual e de que o Tribunal a quo, se bem que não explícita ou assumidamente, lançou mão para pôr termo ao dissídio.

  2. A proposição implícita na sentença em apreço é a de que estas regras, quando aplicadas à matéria dada como provada, autorizariam a inferência de uma actuação cuidadosa e zelosa por parte da A... ou, no mínimo, gerariam uma dúvida razoável quanto à sua falta de cuidado e de zelo, o que, por aplicação do princípio da presunção de inocência, legitimaria a absolvição.

  3. Não nos parece ter sido acolhida na sentença recorrida a tese — de resto, manifestamente incorrecta — de que a diligência ou negligência nas infracções em apreço (as contra-ordenações previstas no art. 36.º, n.º 1 e art. 86.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto) se consubstanciaria precisamente no cuidado ou zelo do comportamento habitual ou estatisticamente dominante da empresa de seguros em causa.

  4. A Meritíssima Juíza a quo parte antes do pressuposto, inteiramente exacto, de que a negligência ou diligência nas violações de prazos em causa repousa sobre as concretas acções e omissões em que se decompõe cada um dos actos relativos à regularização de sinistros automóveis e cuja execução tempestiva é imposta por lei.

  5. Portanto, a negligência ou diligência da actuação das companhias de seguros há-de ser sempre aferida em relação a cada um dos concretos prazos que tenham sido violados, não sendo só por si determinante o facto de ter sido instituído um sistema de gestão de sinistros eficaz.

  6. Simplesmente, a convicção do Tribunal a quo, é a de que, como, em primeiro lugar, não se teria logrado a prova directa dos factos individuais e concretos em que se consubstanciaria tal falta de cuidado — as «causas» do incumprimento — e como, em segundo lugar, o sistema de gestão criado pela A... permitiria deduzir, em razão das regras de inferência baseadas na experiência comum, ter ela actuado zelosamente em cada um dos processos de regularização de sinistros, justificar-se-ia a sua absolvição.

  7. Perguntar-se-á: é suficiente invocar e provar a criação e funcionamento de um sistema de gestão de processos de regularização de sinistros automóveis eficiente para que daí se infira a uma actuação zelosa na prática de cada um dos actos em que se decompõe a regularização de um sinistro concretamente considerado? IX. A resposta é negativa. Com efeito, pode ser posto a funcionar pelas empresas seguradoras um óptimo sistema de gestão de sinistros e, não obstante, os prazos legalmente estabelecidos serem violados dolosa ou negligentemente pelos funcionários da companhia.

  8. Da mesma forma, pode não ser criado (por descuido, falta de meios, desconhecimento da lei, etc.) um tal sistema de gestão e a conduta zelosa dos agentes levar a que sejam plenamente observados os prazos legalmente previstos.

  9. Mesmo que hipoteticamente se admitisse ser relevante a existência de um tal sistema, para efeitos de inferência de uma conduta diligente em cada uma das actuações em que se desdobra a regularização de sinistros automóveis por parte das empresas seguradoras, sempre haveria que definir com rigor quais as características de um tal sistema, por forma a apurar se as mesmas estariam satisfeitas no caso concreto.

  10. Ora, a decisão recorrida é totalmente omissa neste aspecto.

  11. Muitos e bons argumentos depõem em favor da tese de que a eficiência do sistema de gestão dos processos de regularização de sinistros se consubstancia na sua aptidão para impedir qualquer erro humano. Um sistema adequado e eficiente seria capaz de evitar a generalidade dos incumprimentos, excepto os devidos a factores incontroláveis, maxime de origem externa.

  12. Teria ISP o ónus de invocar e provar as razões que estiveram na base dos incumprimentos da A..., «se erro humano, conduta imprópria do lesado, de terceiros, entre outras causas que podem dar origem a tais falhas» (nas palavras do Tribunal a quo), sob pena de não se dar por provada a negligência e assim se ter por justificada a absolvição? XV. Ou, pelo contrário, as próprias infracções aos prazos impostos por lei permitem deduzir, de acordo com uma inferência factual baseada nas regras de experiência comum, uma actuação negligente, sendo certo que à Arguida caberá afastar essa presunção judicial, demonstrando que o incumprimento se deveu a obstáculos que não podia nem tinha obrigação de prever ou que não podia nem tinha o dever de controlar? XVI. Esta última é a posição acolhida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, num recente acórdão.

  13. Com efeito, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 23 de Fevereiro de 2010, acolheu explicitamente a tese de que «a verificação objectiva de uma infracção contra-ordenacional faz presumir, naturalmente (ou seja: por presunção natural ou judicial, “simples ou de experiência”), pelo menos a negligência na sua prática» (cf. o ponto III do sumário do acórdão, em http://www.dgsi.pt/).

  14. Assim, e continuando a transcrever o douto acórdão da Relação de Lisboa, suponha-se que «um condutor – necessariamente licenciado para o efeito – passa um sinal vermelho. Naturalmente que se presume que o fez, pelo menos, com negligência. Algo mais terá de haver para que se crie a dúvida sobre tal facto, dúvida que, com base no in dubio pro reo, o afastará».

  15. Veja-se outro exemplo: «um condutor conduz um carro com carga fora das condições legais. Tendo ele que ser licenciado para a condução, terá que saber que não o pode fazer. Fazendo-o, naturalmente que se presumirá que o fez, pelo menos, com negligência. Algo mais terá de haver para que se crie a dúvida sobre tal facto, dúvida que, com base no in dubio pro reo, o afastará.» XX. Esta tese de que a prática da infracção faz presumir a ilicitude ou tipicidade subjectiva é reforçada no caso concreto das contra-ordenações por violação dos prazos previstos no art. 36.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, se se tiver em conta o disposto na sub-alínea xxii), da alínea a) do n.º 1, do art. 3.º da Norma Regulamentar n.º 16/2007-R (publicada no Diário da República, 2.ª Série, n.º 20, de 29 de Janeiro de 2008, que se junta sob Doc. n.º 1).

  16. Esta alínea tem concretização na Nota de Rodapé n.º 5, da Instrução Informática n.º 34/2007, anexa à Norma Regulamentar referida.

  17. São aí enumeradas justificações que a lei tem por admissíveis do incumprimento de cada prazo fixado na lei.

  18. A Norma Regulamentar permite às empresas de seguros fornecer mais de vinte tipos diferentes de justificações para o incumprimento dos diversos prazos.

  19. Quando uma empresa de seguros fornece ao Instituto de Seguros de Portugal, no seu reporte, a informação de que num determinado processo se verificou uma qualquer dessas justificações para o incumprimento do prazo, a aplicação informática CPRS não assinala, no relatório de incumprimentos, qualquer incumprimento de prazo.

  20. Isto significa que os casos em que o relatório de incumprimentos assinala o incumprimento de prazos são aqueles em que a própria seguradora admite não existir qualquer justificação para esse incumprimento e, por isso, não a assinalou.

    Trata-se de situações em que nenhuma das justificações previstas se verificou.

  21. Neste específico contexto, surge reforçada a aplicação de uma presunção judicial de negligência da Arguida.

    XXVII. Assim, existirá necessária e indubitavelmente negligência, se o prazo previsto no art. 36.º, n.º 1, alínea a) não for cumprido e, para além disso: - a apólice era válida à data do sinistro (Informação adicional 01), - a documentação foi recebida na íntegra (Informação adicional 02); - era possível a marcação da peritagem (Informação adicional 08); - no decurso do prazo não ocorreu um feriado municipal (Informação adicional 10); - não havia danos excluídos na apólice (Informação adicional 16); - não mudou a empresa de seguros (Informação adicional 17); - não houve interposição de acção judicial (Informação adicional 19); - não existiram motivos operacionais de origem externa à empresa de seguros com impacto global e significativo no seu normal funcionamento (Informação adicional 24); - não existiram motivos operacionais de natureza informática incontroláveis e com impacto global e significativo no...

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