Acórdão nº 8/08.8JALRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 13 de Dezembro de 2011

Magistrado ResponsávelORLANDO GON
Data da Resolução13 de Dezembro de 2011
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Relatório Pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido A..., residente na Rua … , Marinha Grande; imputando-se-lhe a prática de factos susceptíveis de integrarem, em autoria material e na forma consumada, um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º n.º 2 al. a) do Código Penal (com referência ao art. 202.º, al. b) do Código Penal).

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 24 de Fevereiro de 2011, decidiu julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência: - condenar o arguido A..., como autor material e na forma consumada de um crime de burla qualificada, previsto e punido, pelos artigos 217º e 218.º, n.º 2 al. a) e 202.º, al. b), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão; e - suspender-lhe a execução da referida pena, pelo período de dois anos e dois meses, nos termos do disposto no art.50º n.º 5 do Código Penal, por entender que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Inconformado com a douta sentença dele interpôs recurso o arguido A..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:

  1. Modificabilidade da decisão de facto: 1- Tribunal a quo não deveria ter dado como provado os seguintes factos: “O arguido apenas pretendeu efectuar a venda do veículo e receber a importância paga pelo B... e C.... Nunca foi sua intenção proceder á entrega dos valores recebidos à empresa “W... - ., Lda., bem como entregar a B... e a C... os documentos da viatura .. e efectuar a regularização da compra e venda da mesma... O arguido actuou com o propósito de obter a entrega do valor de € 30.500,00 por parte de B... e C..., assim sendo alcançado um beneficio económico, com o correspondente prejuízo para aqueles e para a firma “W... - ., Lda. O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária sabendo que a sua conduta era proibida por lei.” 2- Analisando toda a prova produzida em sede de audiência e discussão de julgamento, não se pode imputar tal responsabilidade ao ora recorrente, nomeadamente que o mesmo tenha actuado com o propósito de obter a entrega dos montantes com o intuito de prejudicar e lesar os ofendidos.

    3- Sucede que, por factos alheios a si próprio, o arguido não pôde proceder à entrega dos documentos do veículo por os mesmos ainda não se encontrarem na posse da sua proprietária W..., pois o veículo tendo sido importado da Alemanha, na data do acordo de compra e venda, ainda não tinha legalizado o veículo, sendo o registo do veículo em causa só foi efectuado a 29 de Junho de 2007.

    4- O negócio foi celebrado entre os ofendidos e a U..., sendo os cheques passados a favor da empresa e depositados na conta bancária da firma.

    Tudo em conformidade com os procedimentos normais da empresa, conforme declarações das testemunhas D... e F....

    5- O arguido não podia movimentar as contas bancárias da empresa, quem detinha as funções de gerente era o D... e os cheques só podiam ser assinados pelo próprio. Mesmo que o arguido quisesse restituir tais montantes aos lesados não detinha poderes para o efeito, pois tais poderes não caíam no âmbito das suas funções.

    6- Conforme certidão de registo comercial da U... junta aos autos, em 26/12/2006, houve cessão de quotas a favor de G... e H…, desempenhando os mesmos funções de gerentes, deixando nessa altura o arguido de exercer quaisquer funções na referida empresa.

    7- A nova gerência ficou em resolver a situação dos lesados pois era a si que competia a resolução da situação em apreço, tendo inclusivamente encetado negociações com a W... para regularização da dívida existente e dado uma viatura Audi A6 a experimentar aos lesados para se proceder à substituição do veículo … .

    8- O arguido ao ter intervindo no negócio, sempre teve a plena convicção que o negócio iria correr bem como os outros, sem sequer imaginar que teria o desfecho que a posterior se veio a verificar.

    9- Perante os contornos do negócio e das circunstâncias que posteriormente se vieram a verificar, o insucesso do negócio não lhe poderá ser imputado, muito menos a responsabilidade criminal que veio a ser acusado, pois nunca obteve qualquer benefício com o mesmo e nunca teve qualquer intenção de prejudicar os lesados.

  2. Impugnação de direito: 10- O recorrente entende que com a sua conduta não se verificou os elementos típicos do crime de burla, pois não usou de qualquer astúcia para induzir em erro os ofendidos, na realidade houve um atraso dos documentos do veículo por parte do proprietário que só veio a regularizar tal situação a 29 de Junho de 2007.

    11- Muito menos obteve o arguido qualquer benefício/enriquecimento ilegítimo para si, os cheques foram passados à ordem da empresa U... e depositados à sua ordem.

    12- Caso se tenha verificado um enriquecimento ilegítimo para a empresa, não se provou o arguido tenha agido com essa mesma intenção, daí não se verificar o elemento subjectivo tipificador do crime de burla.

    13- Para que se verifique não basta o dolo e causar um prejuízo patrimonial é necessário que tenha agido com a intenção de o conseguir, através da sua conduta. O arguido ao indagar o ofendido da situação da carrinha A4 e oferecidos os seus ofícios: “ eu encontrei-o, não veio ter comigo de propósito a dizer que me ajudava...Se precisasse que ele testemunhava a meu favor...

    ” a intenção do arguido nunca fora de não concretizar o negócio ou de obter um enriquecimento à custa de B... . A circunstância de se oferecer para sua testemunha demonstra a boa fé do mesmo aquando a celebração do negócio e mesmo no sentido de restituir a situação anterior até onde estivesse ao seu alcance3.

    14- Na perspectiva do arguido, existe sem dúvida um dano patrimonial causado aos lesados, contudo a sua verificação não se deve a uma fraude penal, mas sim civil.

    15- A assunção social de obrigação de salvaguardar bens alheios não pode deixar, pois, de ter um carácter subsidiário e residual. Neste caso, apenas haveria burla se lhe fosse prometido um bem que não existia, porque neste caso, haveria um mise en scene, intervenção de um bem não existente e um prejuízo causado pela aquisição de algo não existente.

    l6- Tendo em consideração que o Direito Penal é a ultima ratio, ou seja, apenas intervém quando se lesam determinados bens jurídicos e quando nenhuma outra ordem jurídica acautela convenientemente o lesado, neste caso, a resolução da situação poderá ficar completamente acautelada pelo direito civil numa acção intentada contra a U....

    17- Face ao exposto, entende o recorrente que não se verificam os pressupostos quer objectivos quer subjectivos tipificadores do crime de burla, pelo que a sentença denota um erro de interpretação e/ou aplicação, por isso violado, os ditames legais, mormente os artigos art. 217.º e 218.º, n.º 2 alínea a), todos do Código Penal.

    Deve o presente recurso merecer provimento, absolvendo o arguido da prática do crime de burla qualificada e revogando-se a douta sentença e substituída por acórdão em conformidade.

    O Ministério Público na Comarca da Marinha Grande respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.

    O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

    Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º2 do Código de Processo Penal.

    Colhidos os vistos, cumpre decidir.

    Fundamentação A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte: Factos provados ( numeração atribuída pelo Tribunal da Relação) 1.

    Em data indeterminada do mês de Maio de 2006 o veículo automóvel, da marca .., de matricula …, encontrava-se nas instalações da empresa “U... - ., Lda.”, sita na …, Marinha Grande.

    1. A referida viatura era pertença da empresa denominada “W... – ., Ldª”, da qual são sócios …e … .

    2. Esta sociedade tinha entregue a viatura ao arguido para que o mesmo, procedesse à sua venda, ficando com a obrigação de entregar o respectivo valor da venda à empresa proprietária.

    3. Em finais do mês de Maio de 2006, B... e C... dirigiram-se ao referido stand da “U... - ., Lda” e aí, depois de verem o veículo, de marca .., acertaram com o arguido proceder à sua compra pelo valor de 30.500,00 €.

    4. Visando a concretização deste propósito, nessa altura, entregaram ao arguido uma viatura Volkswagen, Pólo, com a matricula …, a qual foi avaliada em 2.500,00 €, um cheque do BPI com o nº … na quantia de 6.000,00 € e outro cheque do Banco Santander com o nº … na quantia de 22.000,00€.

    5. Na sequência da entrega da viatura Volkswagen Pólo e dos mencionados cheques, B... e C... receberam do arguido o veículo .., de matricula … .

    6. Os valores de tais cheques foram depositados, em conta da firma “U... - ., Lda”, sendo esta beneficiária dos mesmos.

    7. O arguido, apesar de ter entregue a B... e a C... a viatura de marca .. não procedeu à entrega dos respectivos documentos, nem providenciou pela assinatura do contrato de compra e venda do veículo.

    8. Neste acto de entrega referiu que posteriormente o faria, comprometendo-se a fazer a transferência de propriedade durante o mês seguinte, ou seja, em Junho de 2006.

    9. Nessa ocasião, o arguido entregou àqueles apenas uma cópia do livrete da viatura .. e uma autorização de circulação datada de 8.06.2006, com a validade de trinta dias.

    10. O B... e a C..., confiando que posteriormente seria formalizada a compra e venda da viatura .., receberam esta e entregaram ao arguido o veículo Volkswagen Pólo e os dois cheques supra-mencionados.

    11. Porém, o arguido até momento não diligenciou pela regularização da referida compra e venda, nem lhes entregou quaisquer documentos.

    12. O arguido apenas pretendeu efectuar a venda do veículo .. e receber a importância paga pelo B... e a C....

    13. Nunca foi sua intenção...

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