Acórdão nº 306/11.3TBTMR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 04 de Outubro de 2011

Magistrado ResponsávelTELES PEREIRA
Data da Resolução04 de Outubro de 2011
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra I – A Causa 1.

Em 09/03/2011[1], J… (doravante referida como Devedora ou Insolvente, trata-se da Apelante neste recurso) apresentou-se no Tribunal de Tomar à insolvência, indicando estar impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas[2] e pretender, no contexto processual assim induzido, que lhe fosse concedida a “exoneração do passivo restante”, nos termos dos artigos 235º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[3] [4].

1.1.

Foi tal insolvência efectivamente decretada em 23/03/2011 (através da Sentença de fls. 111/116), sendo que, no ulterior desenvolvimento do processo concursal, apresentou o Senhor Administrador da Insolvência o relatório previsto no artigo 155º do CIRE no qual tomou posição favorável à pretensão de exoneração do passivo adrede formulada pela Devedora[5].

Na Assembleia de Credores, foram ouvidos quanto à referida pretensão os credores presentes, tendo-se estes pronunciado nos termos que aqui se transcrevem: “[…] Dada a palavra ao Representante do credor M…, pelo mesmo foi dito que vota favoravelmente a proposta para liquidação do activo e que se abstêm no que respeita ao deferimento liminar de exoneração do passivo restante.

[…] Dada novamente a palavra à ilustre mandatária do credor Banco ..., pela mesma foi dito que se pronuncia favoravelmente quanto à proposta para liquidação do activo e que vota desfavoravelmente o deferimento liminar de exoneração do passivo restante.

[…]” [transcrição de fls. 182] 1.2.

Surge então o despacho certificado a fls. 184/188 – constitui este a decisão objecto do presente recurso – no qual foi a aludida pretensão da Insolvente objecto de indeferimento liminar, nos termos do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 238º do CIRE.

1.3.

Inconformada interpôs a Insolvente o presente recurso, motivando-o nos termos certificados a fls. 197/208, formulando aí as conclusões que aqui se transcrevem: “[…] II – Fundamentação 2.

Neste recurso, como em qualquer outro, as conclusões formuladas pela Apelante, a cuja transcrição procedemos no item anterior, operaram a delimitação temática do respectivo objecto, nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).

Corresponde ao tema do recurso a ratio decidendi do despacho de indeferimento da requerida exoneração do passivo: a verificação, face aos elementos logo alegados pela Apelante no seu requerimento de apresentação à insolvência, do fundamento liminar de indeferimento dessa pretensão previsto na alínea e) do nº 1 do artigo 238º do CIRE[6], entendido este como elemento consubstanciador de uma designada “cláusula de merecimento” da exoneração.

2.1.

A decisão apelada justificou-se no seguinte elenco de factos e incidências processuais: “[…] 2.1.

A 8 de Março de 2011, J… apresentou-se à insolvência e formulou, entre outros pedidos, o de exoneração do passivo restante.

2.2.

Fundamentou o seu pedido, em suma, da seguinte forma: a) que nunca actuou em prejuízo dos seus credores e que sempre acreditou ter capacidade para fazer face a todas as suas obrigações; b) que no ano de 1999, por decisão dos seus pais, e com o seu consentimento, enquanto ainda estudante, adquiriu um imóvel na cidade de Faro com recurso ao crédito á habitação, para poder beneficiar do juro bonificado (jovem); c) as prestações eram asseguradas pela sua mãe; d) que vendeu o imóvel em questão e liquidou o empréstimo em 2002; e) Em 2004 o seu pai entendeu adquirir outro imóvel, desta feita em Vila Nogueira de Azeitão, tendo ficado o crédito e a aquisição de novo em seu nome, embora aquele figure como seu avalista. f) Que no ano de 2007, tudo se complicou, porque a sua mãe esgotou a sua capacidade de endividamento e necessitou de contrair créditos em nome da filha, com o seu consentimento, que correspondem a quase todos os créditos no valor global de €52.730,34 reclamados pelo Banco…; g) que em Outubro de 2010 a mãe lhe anunciou que não iria conseguir mais liquidar as prestações; h) a devedora vive com a sua mãe em Tomar.

2.3.

O crédito em divida ao Banco…, garantido por hipoteca, é no valor de €73.749,30, e o valor patrimonial actual do imóvel (CIMI) no ano de 2010 era de €62.172,81.

2.4. No ano de 2009 declarou um rendimento bruto no valor de €19.900,40.

[…]” [transcrição de fls. 185/186] Valorando este elenco, conjugando-o com outros elementos complementares efectivamente reconhecidos pela Insolvente no seu requerimento de apresentação[7], diremos que o assumir por ela (Insolvente) dos créditos em causa neste processo visou beneficiar com um juro bonificado os reais destinatários dos valores mutuados (que foram os pais da Insolvente), sendo que estes não preencheriam os pressupostos de facto que lhes permitiriam – a eles, os verdadeiros destinatários dos empréstimos – usufruir dessas condições especiais mais vantajosas, não dispondo a Devedora – como ela própria reconhece – de meios próprios que lhe permitissem suportar o serviço de dívida assim criado (vejam-se os artigos 51 a 55 e 61 do requerimento inicial, transcritos na nota 3 supra). Vale a admissão pela Insolvente desta incidência, atinente às condições que determinaram o seu endividamento, como um reconhecimento, implícito mas cujo sentido é inequívoco, de ter actuado, como se refere na decisão recorrida, como “testa de ferro” dos seus pais, assumindo substancialmente (pois era ela a devedora, não os pais) perante os credores responsabilidades para satisfação das quais sabia, à partida, não dispor de património ou de ingressos suficientes[8].

Confiar – como diz a Apelante que confiou – que outros assegurassem por ela essas dívidas, expressa, no mínimo, uma postura fortemente descuidada e negligente (o que equivale, pelo menos, a uma culpa grave) no assumir de responsabilidades patrimoniais e, se quisermos ser analiticamente precisos na qualificação desse comportamento, até o poderemos situar numa espécie de “zona cinzenta” onde funcionaria, na distinção entre dolo eventual e negligência consciente – num sugestivo paralelo argumentativo com o Direito Penal[9] –, uma grande proximidade ao dolo eventual, através da chamada “fórmula positiva de Franck”, na afirmação desse comportamento como tributário de uma atitude de aceitação implícita, à partida, da impossibilidade de cumprir as suas obrigações, quando a isso fosse realmente chamada[10]. Interessa sublinhar aqui esta circunstância, sendo certo que o Tribunal a quo a teve presente – e parece-nos que bem – ao considerar integrada a previsão da alínea e) do nº 1 do artigo 238º do CIRE e ao remeter para o artigo 186º do mesmo Diploma (interessaria aqui, mais que os casos elencados no nº 2, a regra geral do nº 1 do mesmo artigo 186º).

2.1.1.

Note-se que a possibilidade de exoneração do passivo restante, que o CIRE prevê relativamente a devedores pessoas singulares no artigo 235º, visa propiciar ao devedor, decorrido determinado prazo (cinco anos) de cedência de rendimentos aos credores, um recomeço de actividade económica sem o lastro das dívidas em causa na insolvência anterior[11], dívidas das quais o insolvente é libertado mediante determinadas condições[12].

Neste sentido, a possibilidade de concessão ao devedor insolvente da exoneração do passivo restante assenta, logo à partida (é por isso existem motivos de indeferimento liminar), num juízo não subjectivamente desvalioso quanto à valoração das circunstâncias que conduziram esse devedor à situação de insolvência, e também quanto à atitude deste contemporaneamente à impossibilidade de satisfazer as suas dívidas, o que se configura, no quadro da actuação da situação prevista no artigo 235º do CIRE, como uma verdadeira cláusula implícita de merecimento da exoneração, emergindo esta do artigo 238º, nº 1 do CIRE[13]. É neste sentido que a nossa “exoneração do passivo restante” é doutrinariamente caracterizada, numa análise de Direito comparado, nos seguintes termos: “[…] Siguiendo la estela del legislador alemán, también otros países como Italia y Portugal han incorporado esta figura. Es el caso de la «esdibitazione» italiana o de la «exoneração do passivo restante» portuguesa.

También en estos ordenamientos, la liberación de deudas se condiciona al cumplimiento de determinados requisitos de merecimiento en la persona del deudor y se limita temporalmente.

[…]”[14] Configuram-se no artigo 238º, nº 1 do CIRE, com efeito, fundamentos de indeferimento liminar (cfr. as respectivas alíneas b) a e)) que pressupõem uma apreciação (desde logo liminar) do comportamento do devedor em termos de justificação ou não da concessão daquilo que, em última análise, funcionará para esse devedor como um importante benefício económico – rectius, como um perdão de dívidas[15]. Trata-se, pois, como correctamente a qualificou o Senhor Juiz a quo de uma “cláusula de merecimento” que o Tribunal deve fazer actuar, logo numa fase preliminar de consideração do mérito intrínseco da pretensão do devedor.

Assim sucede, pois estamos, como facilmente se constata aprofundando a análise do possível efeito externalizador induzido pela exoneração do passivo[16], perante um elemento que apresenta alguma (considerável) potencialidade de determinar o aparecimento do desvalor comportamental que na teoria económica se designa como “risco moral” (em inglês moral hazard[17]), enquanto incentivo a um devedor – aliás, a todos os devedores – a actuar descuidadamente na condução e gestão da sua performance contratual face aos seus credores, sabendo esse devedor que, passado algum tempo sujeito a determinadas condições que lhe são suportáveis, vê extinguirem-se as suas dívidas subsistentes, podendo como que “recomeçar do zero”, libertando-se do peso desse fardo (aliás, vendo serem-lhe “perdoadas” parte substancial das suas dívidas[18]). É que, afigura-se-nos intuitivo, aquele que sabe não estar integralmente exposto a todas as consequências desvaliosas de um risco decorrente do incumprimento contratual não...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT