Acórdão nº 704/09.2GDSTB-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 20 de Setembro de 2011

Magistrado ResponsávelALBERTO JOÃO BORGES
Data da Resolução20 de Setembro de 2011
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal (JIC) correu termos o Proc. Inquérito n.º 704/09.2GDSTB-A, no qual, na sequência da instrução requerida pelos assistentes (…) e (…) foi decidido: - rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução, “na parte respeitante aos factos descritos a fol.ªs 413-415 e 416, último parágrafo a fol.ªs 417…”; - declarar aberta a instrução relativamente aos factos descritos nos primeiros cinco parágrafos de fol.ªs 416.

  1. Recorreram os assistentes de tal despacho – na parte em que rejeitou o requerimento de abertura da instrução - concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões (fol.ªs 107 a 186 destes autos): 01) Entende-se que no requerimento de abertura de instrução apresentado foram invocados factos nos quais se verifica o elemento subjectivo de cada crime imputado ao arguido, nomeadamente no tocante aos factos descritos a fol.ªs 413-415 e 416, último parágrafo a fol.ª 417.

    02) Resulta da leitura integral do requerimento de abertura de instrução que se mostram verificados todos os requisitos formais e processuais impostos, tanto pelo art.º 287 n.º 2, como pelo art.º 283 n.º 3 al.ªs b) e c), ambos do CPP.

    03) De facto, não impõe a lei que – na avaliação da presença ou ausência dos elementos factuais necessários à verificação de um tipo de ilícito – se cinja o juiz àquilo que foi expressamente designado como acusação, antes atente na formulação integral do requerimento e em toda a factualidade que nele expressamente se invoque.

    04) O agente comete o crime de violência doméstica se praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima 05) O bem jurídico tutelado com a incriminação das condutas abrangidas no art.º 152 n.º 2 do CP consubstancia a saúde física, psíquica ou mental, bem como a paz familiar; o bem jurídico, enquanto materialização da conduta directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos.

    06) O conceito de maus tratos da norma penal abrange os maus tratos físicos, considerados como aqueles que afectam a integridade física das pessoas aí mencionadas, os maus tratos psíquicos, considerados como aqueles que afectam a auto-estima e a competência funcional do dependente, entre os quais se incluem as humilhações, provocações e molestações, e ainda os tratamentos cruéis, estes considerados como aqueles que sejam desumanos, de forma inadmissível.

    07) Não se exige, para o preenchimento deste crime, que os factos revelem uma especial falta de sensibilidade do agente nem qualquer outra expressão de carácter ou elemento da personalidade particularmente censurável; este ilícito pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação com o sujeito passivo.

    08) No tocante ao elemento subjectivo do tipo, este crime só pode ser punido enquanto cometido de forma dolosa; e se da descrição fáctica que infra se transcreve já decorre, necessária e inevitavelmente, o carácter doloso da conduta, a verdade é que neste crime em concreto o detalhe da alegação do elemento subjectivo não carece sequer de interpretação, pois que bastaria ter sido lido com atenção o RAI para nele se ter descortinado a presença desse elemento subjectivo, expressa, ritual e tabelarmente alegado, embora sem a secura de uma mera fórmula vazia.

    09) Nos art.ºs 228 e 229 do requerimento de abertura de instrução afirma-se: “Sendo o arguido médico, pai, padrasto, e sendo uma pessoa, aparentemente, social e culturalmente bem formada, não podia ignorar que estava a lidar com crianças, completamente indefesas e incapazes de se defenderem e que a sua actuação lhes causaria necessariamente perturbações que se traduziriam em alterações comportamentais graves, capazes de pôr em causa o seu desenvolvimento físico e psíquico harmonioso e efectivamente provocando sofrimentos que se traduziriam em alterações comportamentais graves susceptíveis de condicionarem o seu desenvolvimento”.

    10) “Efeito que se sentiu perversamente, em especial no caso do mais novo dos 5 filhos exclusivamente da requerente, no pequeno (…), que, tratando-se de uma criança particularmente indefesa, se viria a tornar apática, triste, chorosa, revoltada, com dificuldades de relacionamento com as outras crianças e com baixa auto-estima e confiança, que se viu compelida a mudar de residência, a mudar de cidade, a afastar-se dos seus irmãos e a ir viver para Viseu, com o seu pai e com a sua mulher, a mudar de escola e a ser sujeita a acompanhamento especial no ensino e a seguimento psicológico que ainda hoje mantém”.

    11) Os comportamentos desumanos praticados sobre o (…) apresentam uma crueldade desmedida que colocaram em causa a sua integridade física e psíquica, bem como o seu normal desenvolvimento pessoal e social, que uma decisão meramente formal pretende deixar impunes e sem reparação.

    12) Mas atente-se na gravidade desses comportamentos, por referência ao RAI, de onde é manifesta a presença do elemento subjectivo doloso, da prática pelo arguido do crime de maus tratos a menores: “Artigo 185.º O arguido fomentava a competição entre os irmãos, o seu espírito egoísta, enaltecendo uns em detrimento dos outros, comparando-os e recompensando os melhores e desprezando os mais fracos.

    Artigo 186.º Bem revelador deste comportamento é o facto das crianças no Verão de 2008, quando foram passar férias com o seu pai e madrasta, se encontrarem anormalmente agitados e multiplicando-se em acusações mútuas, imputações de culpas recíprocas e de responsabilidades pelos castigos que eram objecto por parte do padrasto”.

    “Artigo 191.º Entre os comportamentos mais graves imputados ao arguido e que hoje são plenamente conhecidos por toda a família encontra-se o hábito que o arguido tinha em maltratar, em humilhar e em diminuir as crianças às horas das refeições.

    Artigo 192.º Refira-se a este propósito o depoimento de (…), que refere claramente que se recorda de o arguido gritar tanto e tão alto com o (…), com as mãos levantadas sobre a criança como se lhe fosse bater e com a cara a milímetros de distância, dizendo-lhe que era um «burro», em frente de toda a gente, enquanto o (…) absolutamente aterrorizado, baixava os olhos, corava, permanecendo ali imóvel e sentado à mesa”.

    “Artigo 197.º Mas mais, relativamente ao pequeno (…), as suas atitude revelaram-se totalmente devastadoras para o seu desenvolvimento e crescimento equilibrado daquela criança, que se tornou um adolescente atemorizado, receoso e inseguro de si próprio, com falta de auto-estima e confiança, com graves problemas de concentração, que se repercutiram na sua capacidade de aprendizagem e sucesso escolar”.

    “Artigo 199.º Reitera-se que o menor numa ocasião foi buscar as suas notas de final de período juntamente com o padrasto, aqui arguido, e que o mesmo, na sequência de tais notas não serem boas, passeou-se com o menor pela cidade de Setúbal, comunicando às pessoas por quem passava que levava ali um «burro».

    Artigo 200.º Mas mais, numa outra ocasião obrigou o (…) a captar a imagem do pequeno (…) na casa de banho, sentado na sanita a chorar, filmagem com a qual humilhava, ameaçava e chacoteava a criança, como forma de o diminuir na sua pessoa e na sua personalidade”.

    “Artigo 204.º Noutra ocasião, em que o menor ia participar numa visita de estudo organizada pela escola que frequentava, em Setúbal, foi o arguido quem o levou ao autocarro.

    Artigo 205.º Ali chegados já lá estavam as professoras e todos os seus colegas.

    Artigo 206.º Ora, o arguido dirigiu-se à professora do menor e perguntou-lhe se a viagem era obrigatória, ao que a professora respondeu que, não sendo obrigatória, era uma viagem de todo conveniente e que era importante o (…) participar na mesma.

    Artigo 207.º Como resposta o arguido respondeu à professora em tom perfeitamente audível perante os presentes, que não pagava nada, que o (…) não estudava nada e que era um burro – o que muito envergonhou o menor.

    Artigo 208.º Aliás, no que se refere a pagamentos, especialmente ao (…), durante o período em que a mãe esteve de baixa médica o arguido era quem entregava diariamente dinheiro aos menores para o almoço, deixando muitas vezes de fora o (…), que passou alguns dias que nem sequer almoçava”.

    “Artigo 210.º Um outro bom exemplo diz respeito a umas análises ao sangue que o pequeno se viu constrangido a fazer por força de uma crise de epilepsia que teve e que o arguido entendeu estar relacionada...

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