Acórdão nº 9155/2002-7 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 18 de Dezembro de 2002

Magistrado ResponsávelABRANTES GERALDES
Data da Resolução18 de Dezembro de 2002
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

I - A intentou acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária, contra o ESTADO PORTUGUÊS pedindo a condenação no pagamento da quantia a liquidar em execução de sentença, não inferior ao correspondente à correcção monetária da quantia de 17.750.000$00 de escudos moçambicanos depositados, em 1976, no Consulado-Geral de Portugal, na Beira, Moçambique, ou, em alternativa, no pagamento do valor correspondente aos juros vencidos desde então.

Alegou para o efeito que, pretendendo sair de Moçambique, após a declaração de independência, realizou depósitos no referido Consulado-Geral, no valor global de PTE 17.750.000$00, operações pelas quais pagou os respectivos emolumentos.

As entregas foram feitas por sugestão dos funcionários consulares, no pressuposto de que brevemente o dinheiro seria transferido para Portugal. O Consulado creditou o dinheiro que recebeu, em nome próprio, em bancos de Moçambique, tendo, nos primeiros tempos creditado o A. pelos juros do capital. Mas apenas em 1995 restituiu o valor nominal dos montantes recebidos, o que não ressarciu o A. de todos os prejuízos que teve.

Contestou o Ministério Público, em representação do Estado Português, invocando que a obrigação de restituição foi cumprida em 28-9-95, de que A. deu quitação sem reserva de juros ou outras prestações.

Impugnou ainda a versão dos factos apresentada pelo A., alegando que o R. apenas recebeu as quantias em causa para as conservar em depósito no Consulado, consubstanciando um depósito regular sujeito às normas consulares, não tendo sido estabelecido o local e prazo de restituição.

Concluiu que o Estado não estava obrigado a restituir a quantia recebida com qualquer acréscimo.

O A. respondeu à matéria de excepção.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção.

Apelou o A. e concluiu que:

  1. Na sentença não se conheceu de toda a matéria suscitada quanto à circulação fiduciária de Moçambique, reservas de cobertura do papel moeda em circulação e seu resgate ou convertibilidade, violando as imposições legais reguladoras da circulação monetária de Moçambique ao tempo em que os depósitos foram feitos, designadamente o regime que decorria do Dec. Lei nº 39.221, de 25-5-53, e do Dec. Lei nº 44.891 de 20-11-63.

  2. O Estado violou o tratamento que haveria a dar quando lhe foram entregues em depósito as notas de Moçambique em circulação ao tempo em que os depósitos foram c) Ao pretender efectivar a responsabilidade civil do R. pelos prejuízos que causou, não se trata de acção com vista ao pagamento de quantia certa, mas com o fim de determinar se o Estado tem ou não responsabilidade pelo retardamento da restituição dos depósitos, se este retardamento por mais de 20 anos foi ou não ilícito e se a restituição pelo valor nominal, dado o tempo decorrido entre os depósitos e a restituição, resolve por completo a obrigação de restituir, ou se estamos apenas perante uma restituição parcial.

  3. O mesmo terá de se dizer quanto ao não pagamento dos juros que o R. chegou a creditar ao A.

  4. O enquadramento feito pela 1ª instância do pedido e causa de pedir fez com que a decisão proferida importe na violação do princípio dispositivo.

  5. Ao considerar que o pedido e a causa de pedir articulados pelo A. consubstanciam um depósito regular, foi violado o disposto nos arts. 1205º, 1206º e 1142º do CC.

  6. Ao pressupor que os depósitos feitos nos bancos de Moçambique pelo Consulado-Geral da Beira, em seu nome próprio, o Estado está a admitir que houve simulação do proprietário titular do dinheiro, atitude que atenta contra a seriedade e bom nome do Estado Português, o que não é admissível sequer num clima de boa fé que tem de caracterizar sempre a conduta do Estado.

  7. Isso atenta contra o bom nome do A., por pressupor que colaborou numa farsa e que encobriu uma simulação, e contra o regime da Lei Consular que regula situações destas, o que tudo importa obrigação de indemnizar prevista no preceito.

  8. O R., como depositário do dinheiro que lhe foi entregue pelo A., constituiu-se nas obrigações previstas nos arts. 1187º, 1189º e 1190º do CC, designadamente na de restituir a coisa com seus frutos e na de avisar imediatamente o depositante dos perigos que a ameaçavam, não tendo feito nem uma nem outra.

  9. Foi o próprio Estado que destruiu o valor da coisa à sua guarda, ao entregar as reservas que cobriam o resgate dos escudos moçambicanos em circulação, na altura dos depósitos, sem assegurar a convertibilidade do dinheiro face aos portadores das notas.

  10. Pagando o valor nominal dos escudos depositados pelo A., e não o seu contravalor à data da restituição, o Estado não cumpriu o que fora determinado pelo Ministro das Finanças, violando os preceitos dos arts. 1188º, nº 1, 1197º, 799º, nº 2 e 487º, nº 2, do CC.

  11. Ao apreciar o documento de fls. 44 dos autos, a Mª Juíza a quo violou os arts. 220º e 1143º do CC.

  12. Ao não atender à dimensão "tempo" relevante para aquilatar do cumprimento das obrigações, o Tribunal a quo violou o princípio nominalista consagrado nos arts. 550º e 774º do CC.

  13. As exigências postas pelo R. quando restituiu parte das obrigações que acabou por satisfazer foram ditadas com abuso de direito, ilicitude sancionada pelo art. 334º do CC.

Houve contra-legações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Factos provados 1. No decurso do ano de 1976, o A. depositou no Consulado-Geral de Portugal na Beira, Moçambique, a quantia total de 17.750.000$00 (escudos moçambicanos): em 2-2-76, 10.000.000$00; em 4-3-76, 900.000$00; em 19-3-76, 1.100.000$00; em 1-4-76, 1.000.000$00; em 26-7-76, 1.000.000$00; em 7-9-76, 3.000.000$00; e em 16-9-76, 750.000$00 - A) a G).

  1. O A. depositou os valores no Consulado, aceitando subscrever os documentos que os titulavam, contra o pagamento de emolumentos - 20º.

  2. O Consulado acolheu então os depósitos por forma a prosseguir as finalidades legais de protecção aos cidadãos nacionais - 18º e 19º.

  3. Por este depósitos, pagou o A. de emolumentos consulares a quantia global de 403.000$00, contra recibos respectivos apostos nos duplicados das guias emitidas no acto da operação, nos termos que constam de fls. 6 a 13, documentos onde o Cônsul-Geral de Portugal na Beira apôs o carimbo e a assinatura - B).

  4. Tais documentos têm o título de "Depósitos voluntários em numerário", e neles se refere, além do mais, que as quantias são entregues no Consulado-Geral de Portugal "para guarda e depósito a favor de Carlos ...

    " ... e que "Berta ... fica também autorizada a movimentar a quantia a que se refere o presente depósito".

  5. Perante a enorme afluência de portugueses junto ao Consulado português na Beira e as avultadas quantias de dinheiro que ali pretendiam guardar, o Consulado decidiu, e os particulares assim o aceitaram, que o dinheiro fosse depositado nos bancos moçambicanos, em nome do Consulado português - 2º.

  6. O Consulado depositou o dinheiro em espécie, em nome próprio, nos bancos moçambicanos - L).

  7. Entre os portugueses residentes na Beira, corria a informação, proveniente de fonte não apurada, segundo a qual os dinheiros entregues no Consulado Português seriam transferidos para Lisboa - 1º.

  8. Também no seio dos referidos cidadãos portugueses circulava a informação, de fonte e datas não apuradas, segundo a qual o suporte de ouro que garantia a convertibilidade do escudo moçambicano fora entregue pelo representante do BNU a entidades moçambicanas - 7º.

  9. Do facto referido em 9. não foram o A. e os outros cidadãos informados pelo Estado Português - 10º.

  10. Ao tempo, o escudo moçambicano estava cotado ao par do escudo português, o que sucedeu até 25-2-77 - 3º.

  11. O A. e o R. não convencionaram o local de restituição dos valores, nem foi fixado prazo para a mesma - 21º, 22º e 23º.

  12. O A. sempre foi manifestando o propósito de reaver o seu dinheiro - 14º.

  13. Um cidadão, de nome B, a propósito do seu pedido de transferência de valores depositados naquele Consulado, recebeu a carta, datada de 23-3-76, no sentido de que poderia solicitá-lo ao Sr. Ministro da Cooperação (fls. 17).

  14. Nos primeiros tempos, o Consulado creditou efectivamente juros pelo capital que recebeu, designadamente, em 15-2-77, creditou a quantia de 62.849$00, nos termos do doc. de fls. 13 - I) e J).

  15. O Consulado da Beira informou o A., através de carta datada de 21-8-91 (fls. 16), que as contas bancárias em causa estavam suspensas, por instruções superiores - 4º.

  16. As contas bancárias abertas pelo Consulado português nos bancos moçambicanos foram suspensas por ordem do Estado moçambicano - 15º.

  17. Através do Despacho Ministerial nº 90/94, de 12/12, do Ministro das Finanças, foi autorizada a entrega em contravalor em escudos dos depósitos efectuados pelos cidadãos portugueses nos Consulados-Gerais de Maputo e da Beira (doc. fls. 171) - M).

  18. Nos termos de tal despacho, foi emitido pelo Estado Português o cheque com o nº 2510055802 da CGD, à ordem do A., no montante de PTE 17.750.000$0, nos termos dos docs. de fls. 42 e 43 - N).

  19. O A. recebeu tal quantia e subscreveu (com reconhecimento notarial de assinatura) então a declaração constante de fls. 44, datada de 28-9-95 na qual se lê "que após o pagamento do valor dos depósitos no valor de 17.750.000$00 que efectuou no consulado geral de Portugal na cidade da Beira, em Moçambique, sob o nº 3652, nada mais terá que reclamar ao Estado Português quanto aos mesmos depósitos" - O).

  20. Aquando da assinatura pelo A. do documento/declaração referido em 20., foi este informado pelos serviços competentes do R. que o recebimento dos valores apenas poderia ocorrer, nos precisos termos e condições previamente consignados naquela e elaborados pelo R. - 25º.

  21. O R. apenas restituiu os depósitos cerca de 20 anos após a entrega no Consulado - 13º.

    III - O direito 1. Introdução Tanto pela sua quantidade como pelo modo de exposição, não se mostra fácil isolar as questões que pelo apelante foram suscitadas.

    As dificuldades já advêm da petição inicial onde, na fundamentação das pretensões...

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