Acórdão nº 5537/2006-3 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 11 de Outubro de 2006
Magistrado Responsável | JOÃO SAMPAIO |
Data da Resolução | 11 de Outubro de 2006 |
Emissor | Court of Appeal of Lisbon (Portugal) |
Acordam em conferência na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
*A. apresentou queixa contra B. imputando-lhe a prática de um crime de denúncia caluniosa em concurso aparente com um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360º do CP em concurso efectivo com um crime de difamação com calúnia p. e p. pelos arts. 180º e 183º nº 1 al. a) e b) do mesmo diploma legal.
O Ministério Público procedeu a despacho de arquivamento do inquérito concluindo não disporem os autos de elementos capazes de fundamentarem um juízo de divergência entre a realidade objectiva e a declarada, o que determinaria que não se pudesse considerar indiciado o elemento objectivo do tipo consubstanciado na falsidade da declaração, não se antevendo que diligências pudessem ser realizadas susceptíveis de conduzirem ao apuramento da conformidade ou desconformidade com a realidade do declarado.
Ordenou o Ministério Público que fosse notificado o assistente Dr. A. no sentido de em 10 dias querendo vir deduzir acusação particular no que respeita ao denunciado crime de difamação.
*O assistente Dr. A. deduziu acusação particular contra o arguido B. imputando-lhe a prática de um crime de difamação com calúnia na forma continuada p. e p. pelos arts. 180º, 183º nº 1 al. a) e b) e 30º nº 2 do CP ou caso assim se não entenda, 4 crimes de difamação com publicidade e calúnia p. e p. pelos arts. 180º, 183º nº 1 al. a) e b) e 30 nº 1 do CP.
*O Ministério Público proferiu despacho no sentido de não acompanhar a acusação particular deduzida pelo assistente.
Referiu que as imputações efectuadas pelo arguido nos depoimentos prestados no chamado "Processo da C." que envolve o assistente em abusos sexuais com menores de sexo masculino, alunos da B. de Lisboa, são objectivamente gravemente atentatórias da sua honra e consideração.
Mas que como as declarações foram efectuadas pelo arguido na qualidade de testemunha no âmbito de um processo crime em fase de investigação que tinha por objecto precisamente a investigação dos abusos sexuais de que foram vitimas menores alunos da Casa C., a questão que se coloca é se testemunhas em processo crime podem ser responsabilizadas e alvo de processo judicial pela prática de crime de difamação devido ao conteúdo de depoimentos que prestem e que objectivamente possam ser considerados como atingindo a honra e consideração de pessoas mencionadas nesse depoimento.
Acrescentou que a formulação constante do tipo de difamação pressupõe que o agente efectue a imputação de modo voluntário, espontâneo e com base no seu livre arbítrio, o que não se sucede quando o agente presta testemunho em processo criminal na sequência de determinação de magistrado ou de OPC por nesse caso não poder ser entendida como um acto voluntário.
Continua dizendo que o depoimento de uma testemunha independentemente da veracidade ou não das declarações prestadas não pode encarar-se como uma conduta voluntariamente assumida, mas antes provocada ou motivada.
Conclui referindo que fora dos casos previstos no art. 365º do CP a falsa imputação a pessoa determinada feita numa inquirição em processo criminal quando essas declarações se reportarem ao objecto do processo consubstancia um crime de falsidade de testemunho e não de difamação porquanto nem o acto de comunicação teve origem na decisão do seu autor nem se destinava a um terceiro, mas ao processo que se apresenta como causa e fim último da participação que originou a imputação.
*O arguido requereu a abertura da instrução alegando em primeiro lugar que a acusação do assistente é nula pois que conclui pela imputação ao arguido em regime de pedido alternativo de duas espécies de crime quando diz que cometeu um crime de difamação com publicidade e calúnia ou "se assim se não entender" quatro crimes de difamação com publicidade e calúnia violando os arts. 283º nº3 al. c) e 285º nº 2 do CPP.
Acrescenta que os factos vertidos na acusação não permitem a sua subsunção ao tipo incriminador primário pretendido pelo assistente, o de difamação, e isso tanto vale para os depoimentos prestados pelo arguido em sede de processo criminal, como para as afirmações que reproduziu em sede de exame médico-legal porquanto a conduta do arguido não pode entender-se como um acto voluntário produto da autonomia da sua vontade, mas antes como um acto devido pois que obrigatório imposto por lei, sob cominação penal, arts. 132º nº 2, 134º e 145º nº 2 do CPP e 360º nº 2 do CP, decorrendo em sede de exame médico-legal a obrigatoriedade do estatuído no art. 6º da lei 45/2004 de 19 de Agosto.
Refere ainda que o arguido não se dirigiu a "terceiros" no sentido pretendido pelo art. 180º nº 1 do CP pois limitou-se a responder ante entidade incumbida legalmente de lhe tomar declarações em processo penal e de o examinar em termos de uma perícia médico-legal, tudo na forma legalmente prevista, pelo que está afastada a própria ilicitude da conduta do arguido.
E se esse argumento não valer então o arguido beneficia da cláusula de exclusão da ilicitude prevista no art. 180º nº 2 do CP porquanto as imputações que o arguido efectuou visaram apenas a prossecução de um fim público legitimo, no caso colaborar com a justiça penal no quadro de um inquérito criminal sobre abusos sexuais de que o arguido se declarou vitima e para o qual foi convocado estando convencido da verdade do que afirmou tendo procurado explicitar em auto as razões pelas quais lograra obter tal convencimento nisso incluindo a pessoa do assistente.
Termina referindo que a conduta do arguido não pode subsumir-se ao tipo incriminador de denúncia caluniosa previsto no art. 365º do CP e ao ilícito de falsidade de depoimento previsto no art. 359º do mesmo diploma legal pelas razões expostas pelo Ministério Público no despacho de arquivamento do inquérito não tendo o acusador particular legitimidade para ser assistente quanto a eles.
Conclui pedindo que fosse proferido despacho de não pronúncia.
*Foi proferido despacho de pronúncia, constante de fls. 455 a 463, na qual foi decidido por intempestividade julgar improcedente a nulidade invocada pelo arguido e imputado ao arguido a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de difamação na forma continuada p. e p. pelos arts. 180º nº 1, 183º nº 1 al. a) e 30º nº 2 do CP tendo para o efeito sido determinado o seu julgamento em Tribunal Singular.
*Inconformado com o despacho de pronúncia proferido interpôs o Ministério Público recurso do mesmo tendo apresentado as seguintes conclusões: 1. Na acusação particular imputa-se ao arguido, em regime de pedido alternativo, à escolha do juiz de instrução, duas espécies de crime: um crime de difamação continuado, ou caso assim não se entenda, quatro crimes de difamação, em concurso real.
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A imputação ao arguido, em regime alternativo, de dois crimes integra, claramente, a situação prevista no art. 283º nº 3 al. c) do Código de Processo Penal já que atribui ao arguido uma responsabilidade criminal indefinida e aleatória.
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Atendendo ao elemento sistemático de interpretação, a acusação particular considera-se integrada na fase processual do inquérito.
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Uma nulidade verificada numa fase inicial do inquérito pode ser arguida, por força do disposto no art. 120º nº 3 al. c) do Código de Processo Penal, até ao encerramento do debate instrutório enquanto a nulidade da própria acusação, como acto final do inquérito ou posterior ao mesmo (na tese da decisão recorrida) teria que ser invocada no prazo de 10 dias, o que se revela manifestamente incoerente.
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O entendimento perfilhado na douta decisão recorrida admite como corolário o seguinte efeito perverso: se não tivesse sido requerida a abertura de instrução, no caso em apreço, sempre tal nulidade deveria ser oficiosamente apreciada nos termos do art. 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. c) do Código de Processo Penal e nem carecia de ser invocada ou arguida em tempo.
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A tese perfilhada na douta decisão recorrida implicaria, igualmente, que o arguido tivesse, no caso vertente, que arguir a nulidade em requerimento autónomo (no prazo de 10 dias) e, posteriormente, requerer a abertura de instrução (para o que dispõe do prazo de 20 dias), situação que não se revela coerente com o princípio da economia processual.
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O art. 120º nº 1 do Código de Processo Penal preceitua que qualquer nulidade relativa deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.
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Não se afigura coerente que o legislador tenha consagrado um regime próprio para a arguição das nulidades relativas, como é o caso da ora invocada, e se admita que, no caso em apreço, se deva recorrer ao prazo previsto na norma do art. 105º nº 1 do Código de Processo Penal, que reveste um carácter manifestamente residual.
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Por último, levando o entendimento da douta decisão recorrida às últimas consequências, seríamos forçados a admitir que o prazo concedido para a arguição desta nulidade seria substancialmente mais curto no âmbito de uma acusação particular do que numa acusação pública, quando os regimes das duas acusações são equiparados (v.g. requisitos formais e para requerer a respectiva abertura de instrução), o que se traduziria, a final, numa situação com tratamento desigual e sem fundamento.
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Face às considerações supra expendidas resta-nos concluir que a nulidade em apreço respeita ao inquérito e foi tempestivamente invocada.
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Assim, deve proceder a invocada nulidade com a consequente anulação da acusação particular, nos termos das disposições conjugadas dos art. 283º nº3 al. c), 120 nº 3 al. c) e 122 todas do Código de Processo Penal.
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A formulação constante do tipo de difamação pressupõe que o agente efectue a imputação de modo voluntário, espontâneo e com base no seu livre arbítrio.
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Ora, semelhante pressuposto não se encontra presente quando o agente preste o seu testemunho, no âmbito de processo de natureza criminal, na sequência de determinação de magistrado ou de OPC.
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Na verdade, a prestação de...
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