Acórdão nº 1887/04-1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 17 de Novembro de 2004

Magistrado ResponsávelVIEIRA E CUNHA
Data da Resolução17 de Novembro de 2004
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães Os Factos Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº133/99, do Tribunal da Comarca de Vieira do Minho.

Autores – "A" e mulher, por si e em representação de sua filha menor Jacinta.

Réus – "B" e mulher.

Pedido Os AA. instauraram acção popular, nos termos da Lei nº83/95 de Agosto, no sentido de o Réu ser condenado: 1º - A reconhecer os AA. como donos e legítimos proprietários das Leiras dos ... e Campo dos ... e de todos os prédios descritos no doc. nº1, bem como de duas nascentes que nesses campos brotam.

  1. - A encerrar imediata e definitivamente a vacaria que mantém em funcionamento no Lugar de Entre..., na freguesia de ..., demolindo-se as respectivas estruturas e limpando as fossas de todos os resíduos que nelas se encontrem.

  2. - A abster-se de utilizar os silos para armazenagem de forragens ou armazenamento de quaisquer alimentos para o gado que impliquem a junção de produtos nefastos para as águas.

  3. - A pagar aos AA., a título de danos de natureza patrimonial, a quantia já certa de Esc. 2.550.000$00, acrescida de juros, à taxa legal, até integral pagamento; tal quantia refere-se à indemnização devida pela poluição de duas nascentes, despesas anormais com a manutenção da pintura da casa, quebra de produtividade por não ter agricultado o Campo dos ..., relegando-se a parte restante dos danos de natureza patrimonial, que neste momento não é possível quantificar, para liquidação em execução de sentença.

  4. - A título de danos de natureza não patrimonial, a pagar aos AA. a quantia de Esc.6.000.000$00, acrescida de juros legais, a contar da citação, quantia repartida pela seguinte forma: Esc.2.000.000$00 para cada um dos cônjuges e Esc.2.000.000$00 para a menor Jacinta.

  5. - A pagar uma indemnização à comunidade de Rossas, no montante de Esc.3.000.000$00, quantia que deverá ser enviada à Junta de Freguesia de Rossas, para que seja gasta na organização de eventos que tenham por objectivo a divulgação de informação sobre legislação do ambiente, direitos dos cidadãos na promoção de um ambiente sadio, expedientes processuais a que qualquer cidadão pode lançar mão em caso de violação do ambiente, vantagens da criação de estruturas associativas para defesa de determinados locais, nomeadamente o rio Ave, ou de outra forma que aquela Junta entenda, mas sempre ligada aos problemas ambientais.

Tese dos Autores São donos de uma unidade agrícola de tipo familiar, no lugar de Entre..., da freguesia de Rossas, onde se dedicavam à agricultura e pecuária e unidade na qual se encontram duas nascentes de água.

Todavia, o Réu mandou construir uma vacaria para duzentas vacas, situada a cerca de 50m. da casa dos AA., e dois silos, para armazenamento de pasto.

O cheiro que exala a vacaria é insuportável, não apenas para os AA. como para as populações de diversos lugares da freguesia de Rossas, sobretudo no tempo quente, fazendo acudir aos locais citados verdadeiros enxames de moscas.

Tal cheiro é ainda potenciado pelo transporte de dejectos dos animais, que o Réu efectua para outros campos sua propriedade.

As águas que correm nas imediações da vacaria deterioraram por completo a água nascente dos Autores, bem como reduziram a produção agrícola e o pasto dos terrenos dos AA.

A poluição referida dirige-se também para o rio Ave e para a ribeira das Furnas (afluente daquele rio), que passa a 50m.

A situação referida tem acarretado danos de natureza patrimonial e não patrimonial para os AA., uma sua filha menor, e ainda para a população de Rossas.

Tese dos Réus Impugnam motivadamente a tese dos Autores.

Sentença O Mmº Juiz “a quo” julgou a acção parcialmente procedente, e condenou o Réu: - a reconhecer os AA. como donos dos prédios denominados Leiras ... e Campo dos ... e dos prédios melhor identificados no doc. nº1 junto com a P.I., bem como de duas nascentes; - a encerrar a vacaria sita no dito lugar de Entre..., freguesia de Rossas e a limpar as fossas a esta adjacentes de dejectos que contenham; - a abster-se de utilizar os silos para armazenamento de forragens ou armazenamento de quaisquer alimentos para o gado; - a pagar aos AA., a título de danos patrimoniais a quantia que se liquidar em execução de sentença, em consequência da contaminação do ar, da água e do solo, relativamente à casa de habitação e terrenos dos AA.; - a pagar aos AA., por si e em representação da sua filha menor, a quantia de € 15 000; - a pagar à comunidade de Rossas a quantia que se liquidar em execução de sentença, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, por via da poluição do ar, da água e dos solos, por via da actividade de exploração da aludida vacaria; - a pagar aos AA. juros de mora vencidos e vincendos.

Conclusões do Recurso de Apelação apresentado pelo Réu 1ª - A "questão" discutida nestes autos apresenta contornos ou é revestida de circunstancialismos únicos que muito se distanciam de uma linear acção de condenação onde se alega a existência de actos contra o ambiente, saúde pública e qualidade de vida dos habitantes de um Lugar em geral e de elementos específicos dessa mesma população.

  1. - Ao condenar o Réu (e a Chamada) a encerrar “tout court” a vacaria sita no Lugar de Entre..., freguesia de Rossas, do concelho de Vieira do Minho, a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” padece do vício da inconstitucionalidade e, bem ainda, de falta, insuficiência e contradição da respectiva fundamentação, de facto e de direito, e de deficiente valoração da prova produzida nos autos.

  2. - A nossa Lei Fundamental, v.g. através do seu artigo 61º nº1 garante e tutela como valor constitucionalmente relevante a liberdade de iniciativa económica privada, a qual, desde logo, se manifesta na liberdade de empresa/estabelecimento, presente quer no momento da sua constituição quer no exercício de uma actividade económica.

  3. - De igual modo, a Constituição (C.R.P.) garante, mormente no seu artigo 62° nº 1, o direito de propriedade privada, sendo certo que o objecto desse direito fundamental não se circunscreve às coisas - móveis e imóveis - abrangendo, ao invés, uma realidade mais ampla, equivalente ao conceito de património.

  4. - A opção constitucional pela integração sistemática da liberdade de iniciativa económica privada e do direito de propriedade privada no título dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais não lhes retira a sua dimensão fundamental de liberdades, pois que a C.R.P. encara a propriedade e a livre iniciativa económica privada como um espaço privilegiado de autonomia pessoal (nesse sentido, vide MARIA LÚCIA AMARAL PINTO CORREIA, in "Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador", Coimbra, p. 546).

  5. - Nessa medida - ou seja, enquanto espaço e manifestação de liberdade e autonomia (mormente perante o Estado), consubstanciado numa posição subjectiva individual susceptível de ser referida de modo imediato e essencial à pessoa humana - sendo reconhecida ao direito de propriedade privada e à liberdade de iniciativa económica privada, tanto pela doutrina como pela jurisprudência constitucional, natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (cfr. v.g., JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, in "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", Almedina, Coimbra, 1983, p. 211, JORGE MIRANDA, in "Manual de Direito Constitucional ", IV, 2ª edição, Coimbra, 1993, pp. 143 e 466, e Acórdão do Tribunal Constitucional nº 236/86 de 9 de Junho de 1986, in "Acórdãos", 80 vol., pp 135 e ss.).

  6. - Daí que as restrições ao direito de propriedade privada e à liberdade de iniciativa económica privada tenham de respeitar o princípio da proporcionalidade estabelecido pelo nº 2 do artigo 18º da C.R.P., maxime limitando-se, quando fundamentadas, ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, mas sempre de forma a manter-se intocável a extensão e o alcance do conteúdo essencial daqueles direitos objectos de restrição.

  7. - Assim, a resolução de uma colisão ou conflito de direitos há-de sujeitar-se, vinculadamente, a um critério da proporcionalidade, devendo o intérprete, caso a caso, estabelecer limites e condicionalismos de forma a alcançar-se uma harmonização ou concordância prática entre eles.

  8. - Na situação concreta dos autos, tanto o direito dos Autores como o dos Réu e Chamada gozam de tutela constitucional: de um lado, os direitos inerentes à personalidade física ou moral e a um ambiente saudável; do outro, o direito dos recorrentes à liberdade de iniciativa económica privada e o direito de propriedade.

  9. - Estamos, pois, em presença de um conflito ou colisão de direitos, a solucionar à luz do já referido princípio da proporcionalidade. Nesse desiderato, pese embora o direito dos Autores, porque directamente radicado no direito de personalidade, deva considerar-se - abstracta e aprioristicamente - superior ao direito - também referido à pessoa humana mas de natureza e conteúdo patrimonial - dos recorrentes e, assim, aquele prevaleça sobre este, a verdade é que o critério, constitucional, da proporcionalidade posterga o sacrifício radical e absoluto dos direitos à liberdade de iniciativa económica privada e de propriedade privada, cujo núcleo essencial a Lei Fundamental coloca a salvo de qualquer restrição.

  10. - No mesmo sentido se pronunciou o ACÓRDÃO DO STJ de 15-01-2004, reproduzido na íntegra in www.dgsi.pt: "(...) mesmo o direito inferior deva ser respeitado até onde for possível e apenas deverá ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido «pela tutela razoável do conjunto principal de interesses» - cfr. CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral da Personalidade, 1995, pp. 516,517,534,540 e 549, citado no acórdão do STJ, de 16-05-2000, in CJSTJ, ano VIII, tomo 11, p. 68.

  11. - Ora, ao condenar o Réu (e a Chamada) a encerrar “tout court” a vacaria sita no lugar de Entre..., freguesia de Rossas, do concelho de Vieira do Minho, a sentença sob recurso sacrificou - de forma...

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