Acórdão nº 286/07-1 de Tribunal da Relação de Évora, 12 de Junho de 2007

Magistrado ResponsávelANTÓNIO JOÃO LATAS
Data da Resolução12 de Junho de 2007
EmissorTribunal da Relação de Évora

Após audiência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. Relatório 1. - No Tribunal Judicial de …, foram julgados em processo comum com intervenção do tribunal singular: A. Ldª … B….

a quem o MP imputara a prática, por cada um, de um crime continuado de abuso de confiança fiscal p. e p., à data, pelo art.º 24 n.º 1, 6, 7 e 9 n.º 2 do DL n.º 20-A/90 de 15/1, na redacção do DL n.º 394/93 de 24/11, actualmente p. e p. pelo art.º 105 n.º 1 e 7 da Lei n.º 15/2001 de 5/6, e art.º 30 n.º 2 do Código Penal.

  1. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento foram os arguidos absolvidos da prática daquele crime.

  2. -Inconformado, recorreu o MP, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem: «Conclusões 1. O princípio do ne bis in idem visa garantir que nenhuma pessoa poderá ser julgada repetidamente pelo mesmo crime, entendendo este como a coincidência entre a distinta parcela da realidade factual julgada e aquela que se vai julgar, visando essencialmente tutelar o mesmo bem jurídico num critério jurídico-unitário.

  3. Estando em causa prestações devidas a título de I.V.A. em períodos certos e determinados, não coincidentes com prestações devidas à segurança social, como cotizações, já objecto de julgamento e decisão transitada, não poderá esta última produzir efeitos de caso julgado em relação àqueles factos.

  4. E tal consideração não sai infirmada pelo facto de em ambas as situações poderem estar em causa crimes continuados porquanto o pedaço de vida em confronto em ambos os processos não é efectivamente coincidente, antes tratando realidades diversas.

  5. Na hipótese de continuação criminosa em relação a tais factos, há que não esquecer estarem subjacentes diversas infracções parcelares, com diferentes resoluções enquanto manifestações de vontade de apropriação de diversas quantias devidas ora ao fisco ora à segurança social.

  6. Diferentemente, uma unidade de tratamento conceber-se-ia com facilidade acaso se tivesse concluído existir apenas uma resolução de vontade dos agentes em ordem a não entregarem quaisquer quantias devidos ao Estado, fosse como imposto fosse como cotização para o sistema de segurança social, consequência de um mesmo desígnio ou projecto criminoso.

  7. Sendo o crime continuado composto por várias infracções, no quadro de um condicionalismo exterior, apreciadas em determinado momento, não poderá uma sentença produzir força de caso julgado relativamente a outras infracções que sejam descobertas e processadas posteriormente, devendo restringir-se o âmbito de aplicação daquele princípio apenas a factos e infracções que aí tenham sido julgados.

  8. Mas, mesmo que se concluísse que a conduta supervenientemente conhecida estaria incluída numa continuação criminosa já julgada, haveria que apreciar a sua gravidade face àquela, procedendo-se de acordo com o art.79° do Código Penal, relevando e atendendo à globalidade dos factos, procedendo-se à fixação de uma pena correspondente.

  9. Não existe uma repetição de julgados estando em causa factos diversos, consubstanciadores dos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social, dado que se tratam de normas diversas, que visam tutelar interesses distintos, ou seja, os interesses do Estado na sua veste fiscal e o dever de colaboração dos empregadores com a administração da segurança social.

  10. O melhor sentido da proibição de repetir o caso julgado, em processo penal, é o de obviar que o mesmo arguido seja submetido a julgamento mais que uma vez pelo mesmo ilícito, sendo este entendido como o conjunto de elementos do tipo legal, subentendendo-se igualmente uma coincidência dos bens jurídicos protegidos.

  11. Inexistindo qualquer violação do caso julgado e do princípio ne bis in idem, deverá ser graduada e fixada pena concreta que tome em consideração os novos factos, ainda que eventualmente numa relação de concurso ou até de continuidade com outros anteriormente julgados.

    Nestes termos e nos mais de direito deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que não determine a extinção do procedimento criminal e proceda à aplicação aos arguidos de uma pena concreta pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. 24°, nºso 1, 6, 7 e 9, n.º 2 do D.L. n.º 20-A/99, de 15.01 na redacção do D.L. nº 394/93, de 24.11, actualmente pelo art. 105°, nºs 1 e 7 do R.G.I.T. e art. 30°, nº 2 do Código Penal.

    Vossas Excelências, no entanto, melhor apreciarão e decidirão como for de justiça. » 4. - Notificado, respondeu o arguido, pugnando pela integral manutenção do decidido.

  12. - Nesta Relação, o senhor magistrado do MP apresentou o seu parecer concluindo pela procedência do recurso.

  13. - Notificado da junção daquele parecer, o arguido nada disse.

    Cumpre apreciar e decidir.

    1. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso e dos poderes de cognição do tribunal ad quem É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios elencados no n.º 2 do art. 410° do Código de Processo Penal, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das secções do STJ de 19/1 0/95, in D.R., I-A de 28/12/95.

    Não tendo sido gravadas as declarações e depoimentos prestados oralmente na audiência de julgamento, este tribunal ad quem conhece apenas de direito (art. 363º e 428º, do CPP.

    O objecto do presente recurso pode desdobrar-se, no essencial, na decisão de três questões jurídico-penais, de ordem substantiva e processual: - sentido e alcance da identidade de bem jurídico, enquanto requisito da noção legal de crime continuado contida no art. 30º nº2 do C.Penal, - identidade ou diversidade do bem jurídico protegido pelos crimes de abuso de confiança (fiscal) p. e p. pelo art. 105º do RGIT e de abuso de confiança da segurança social p. e p. pelo art. 107º do RGIT; e, na hipótese de se concluir pela existência de crime continuado, - implicações do princípio da consumpção do caso julgado, nos casos de crime continuado.

  14. - A decisão recorrida.

    II - A - FACTOS PROVADOS Provou-se o seguinte: 1 - A arguida A. … Ldª é uma sociedade comercial por quotas que iniciou a sua actividade no decurso do ano de 1974 e que tem como objecto social a exploração industrial de oficina de automóveis, comércio agregado à mesma, bem como o comércio de venda de automóveis; 2 - O arguido B. .. é o único sócio gerente daquela sociedade, desde a constituição desta; 3 - No exercício desta sua actividade comercial, a sociedade arguida cobrou e recebeu de clientes a quem vendeu bens e prestou serviços, a título de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), as seguintes quantias: a) 1.250,90 €, no decurso do mês de Março de 2000; b) 301,50 €, no decurso do mês de Agosto de 2000; c) 417,11 €, no decurso do mês de Setembro de 2000, No valor total de 1.969,51 €; 4 - Quantias que o arguido B. …, no âmbito dos seus poderes de gestão, devia ter entregue ao Estado nos prazos legais, o que não fez, nem mesmo nos 90 dias subsequentes, ou posteriormente; 5 - O arguido B. … quis e conseguiu integrar as quantias referidas no património da sociedade, bem sabendo que não lhe pertenciam e que as devia entregar ao Estado e que desse modo causava a este um desfalque patrimonial de igual valor; 6 - O arguido B. … canalizou essas quantias para a satisfação de encargos da empresa, como seja pagar a fornecedores e empregados, sendo que desde 1996 que já a actividade da empresa enfrentava grandes dificuldades económicas e de liquidez; 7 - O arguido B. … agiu voluntária, livre e conscientemente, em nome e no interesse da arguida A. … Ldª, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei; 8 - Durante os anos de 1999 a 2001 a sociedade arguida passou por um grande descontrole de contabilidade, só a partir de 2002 voltando a regularizar as declarações de IVA a apresentar nas Finanças; 9 - O arguido B. … foi já condenado, por sentença proferida no Proc.C.S. n.º 220/02.3TAMMN do 2.º juízo deste tribunal, transitada em julgado, e por factos de Fevereiro de 1999 a Dezembro de 2001, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. pelo art.º 105 n.º 1 e 107 n.º 1 da Lei n.º 15/2001 de 5/6, na multa de 100 dias, a uma taxa diária de 2 €; Pelos mesmos factos e mesmo crime, foi também a sociedade A. … Ldª condenada em multa de 100 dias, à taxa diária de 5 €.

    10 - O arguido B. … admitiu a prática dos factos; 11- Actualmente a sociedade arguida não exerce qualquer actividade; o arguido B. … aufere uma reforma mensal de 427 €, dedicando-se ainda à venda de automóveis. A mulher é doméstica. Paga a prestação bancária mensal de 630 € referente a um crédito que contraiu. Estudou até ao 4.º ano de escolaridade.

    12 - A quantia acima referida ainda se encontra por pagar; B - FACTOS NÃO PROVADOS Inexistem factos por provar.

    C - CONVICÇÃO DO TRIBUNAL O tribunal fundamentou a sua convicção: 1 - Nas declarações confessórias prestadas pelo arguido, que também depôs sobre a sua situação sócio-económica, bem como da sociedade arguida de que é sócio. Apresentou um discurso que nos pareceu sincero e credível, reportando-se ao destino que foi dado ao dinheiro devido a título de IVA e em causa nos autos; 2 - A testemunha F. Técnico da Administração Tributária na Direcção de Finanças de Évora e instrutor do processo que aí correu relativamente aos ora arguidos, de forma clara e recorrendo a apontamentos seus, descreveu a situação fiscal do arguido, a forma como as quantias em falta foram apuradas, bem como o modo como outras também devidas e relativas aos demais meses do ano de 2000 foram pagas com recurso a uma conta-corrente de IVA.

    3 -No teor da documentação junta aos autos e relativa ao IVA em dívida - fls. 14 a 490 - no CRC do arguido constante de fls. 533 e 534, e na certidão judicial entretanto junta aos autos.

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