Acórdão nº 3529/05 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 11 de Julho de 2006

Magistrado ResponsávelVIRG
Data da Resolução11 de Julho de 2006
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam o seguinte neste Tribunal da Relação: I. Relatório 1. Nesta acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, que A...

, casado, pedreiro reformado, residente na Rua X..., ..., Coimbra, move a B...

, com sede na Rua Y..., em Coimbra, Companhia de Seguros C...

, com sede em Z..., em Lisboa, e a interveniente D..., Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua K..., em Lisboa, aquele pede a condenação das rés a pagar-lhe a quantia de 220.835 euros, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação.

Alegou, em resumo: Que foi vítima de um acidente de trabalho em 6 de Janeiro de 1989, em consequência do qual foi internado e sujeito a intervenção cirúrgica (abertura de joelho) na Casa de Saúde da 1ª ré. Por via disso, em 12 de Janeiro de 1989, aí foi sujeito a uma transfusão de sangue, sendo transfusionista o Dr.

E...

e provindo o sangue do dador F...

. Teve alta a 3/2 e foi ali novamente internado. O T.T. fixou-lhe a pensão pelo acidente, a cargo da 2ª ré.

.Que em 1998/99, devido a perturbações que sentia, passou a ser consultado no CHC e a 10/10/2000 o Dr.

G...

encaminhou-o para internamento nos HUC, onde lhe foi diagnosticada cirrose hepática, para a qual evoluira a hepatite C de que sofre e causada pelo vírus VHC. Tal doença proveio da transfusão de sangue, contaminado pelo vírus VHC, daí lhe resultando danos de ordem patrimonial e não patrimonial.

Que não foi feito qualquer exame, teste ou análise ao sangue aplicado na transfusão, em violação do Desp.12/86 de 5-5.

Que em Janeiro/89 ainda não havia sido descoberto o vírus VHC (art. 50), mas há muito era conhecida a infecção provocada por aquele agente, infecção essa conhecida por hepatite “não A-não B” (art. 51) e que se sabia estar associada à transfusão de sangue e seus derivados (art. 52).

Que o VHC se mantém em latência num período de 10 a 20 anos, mas, no caso do A.., os primeiros sintomas ocorreram cerca de 10 anos após, uma vez que, tendo o hábito de ingerir bebidas alcoólicas, este facto acelerou ligeiramente o processo.

Que a 1ª ré não cumpriu o contrato de serviços médicos a que se obrigara (art. 798º do CC) e violou ilicitamente o direito absoluto à integridade física e as normas destinadas a proteger os interesses do A (art. 483º). A actividade da 1ª ré reveste-se de perigosidade intrínseca e pelos meios empregados – mormente a transfusão de sangue – e daí a sua responsabilidade pelo art 493º nº 2 do CC, se não se provar a sua culpa.

Que a responsabilidade da 2ª ré radica no art. 500º do CC.

  1. A ré Companhia de Seguros C... impugnou parte do alegado e defendeu que nunca existiu entre si e a B... qualquer relação de comissão. Existia uma relação mediante a qual a B... lhe fornecia, mediante contrapartida pecuniária, o resultado da sua actividade de casa de saúde, sem que influenciasse o tipo ou o modo dos cuidados de saúde prestados. Concluiu pela improcedência do pedido.

  2. A ré B... deduziu o incidente de intervenção da D..., Companhia de Seguros, S.A , por com ela ter celebrado um contrato de seguro mediante o qual havia transferido a responsabilidade civil por danos causados a terceiros na sua actividade.

    Defendeu-se com a aceitação da prestação dos cuidados de saúde pelo autor, incluindo a transfusão de sangue, conforme contrato de prestação de serviços celebrado entre a B... e a 2ª ré, e a alegação de que foi ele informado dos riscos inerentes à transfusão, com referência à sida e hepatite. Essa transfusão foi efectuada pelo Dr. E..., médico dos HUC, cujos serviços foram pagos pela ré Companhia de Seguros C.... O dador era pessoa saudável, sem qualquer doença crónica ou infecto-contagiosa e sem comportamentos de risco. Foi submetido às provas de despistagem do vírus da hepatite B, sífilis e sida, no Laboratório Matos Beja e no Hospital dos Covões. Nessa altura não era exigida a pesquisa dos “anticorpos” da hepatite C, cujo vírus só foi descoberto em finais de 1989, e os testes de despistagem só se iniciaram em 1990. Acrescentou que o sangue ministrado ao autor estava nas condições regulamentares da época e que o autor pode ter sido contaminado pelo VHC noutras circunstâncias. Concluiu pela improcedência da acção.

  3. Admitida a intervenção da D... – Companhia de Seguros, S.A. a título principal, esta contestou, invocando designadamente que o autor ingeria excessivamente álcool e nisso reside a causa da cirrose. Concluiu pela sua absolvição do pedido.

  4. O autor replicou.

  5. Foi proferido o despacho saneador, foram descritos os factos considerados assentes de A) a Q) e foi organizada a base instrutória, com 57 quesitos e, conforme fl 351 s, aditamento de mais 6.

    Realizou-se a audiência de julgamento, com gravação da prova pessoal, e foi decidida a matéria de facto controvertida nos termos definidos a fls. 488 a 494, sem reclamação.

  6. Seguiu-se a sentença, que julgou a acção improcedente e absolveu as rés do pedido.

    Recorre o A , concluindo a sua alegação, em resumo: 1ª) a 4ª) No prévio arrolamento de documentos, a 1ª ré sonegou dolosamente os documentos cuja junção ali fora ordenada e veio juntá-los nesta acção; 5ª) A ré litiga de má fé; 6ª) Os documentos aqui juntos e antes sonegados não podem ser considerados meio probatório; 7ª) A sonegação implica inversão do ónus da prova do nexo causal e da culpa (art. 344º nº 2 do CC e 519º nos 1 e 2 do CPC); 8ª) Pela inversão quanto ao nexo causal, devem dar-se como provados os factos dos quesitos 8º e 9º; 9ª) a 14ª) O quesito 61º deve ser não provado; 15ª) Os quesitos 46º a 51º e 60º devem ser não provados; 16ª) e 17ª) Os quesitos 10º e 11º devem ser provados, face à dita sonegação; 18ª e 19ª) Nas respostas dada aos quesitos 14º e 15º deve acrescentar-se como provado: «... existindo à data diversos mecanismos de prevenção, detecção e eliminação de outros vírus, incluindo o vírus não A e não B»; 20ª) O quesito 42º deve ser não provado; 21ª) A resposta ao quesito 8º permite concluir pelo nexo causal, sem prescindir da inversão do ónus da prova deste; 22ª) A ré não ilidiu a presunção legal de culpa em razão da sua responsabilidade contratual e delitual em resultado do exercício de actividade perigosa. E estão provados os factos da culpa; 23ª) Esta culpa traduz-se na omissão de procedimentos securitários impostos por lei, que tiveram como consequência a impossibilidade da identificação positiva do dador e a relação positiva deste com o sangue transfusionado, e entre este e o sangue analisado; 24ª) As rés seguradoras devem ser condenadas solidariamente na indemnização; 25ª) Foram violados os art. 342º, 344º nº 2, 443º, 483º, 493º nº 2, 799º nº 1 do CC e 456º nº 2 c) e d) e 519º nº 1 do CPC.

    As rés contra-alegaram.

    Correram os vistos legais e nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

    1. Fundamentos de Facto: A sentença contém os seguintes factos provados: 1. Em seis de Janeiro de 1989, pelas 18h30, o autor caiu num buraco de umas obras em curso na variante de Cernache da E.N. n.º1, quando circulava por aquela via, de Coimbra, seu local de trabalho, para Cernache, seu local de residência, tripulando um velocípede a motor (a).

  7. À data, o autor trabalhava como pedreiro, por conta e sob a autoridade e direcção da sociedade Lourenço Simões e Reis, Lda., que havia transferido para a ré Companhia de Seguros C... , S.A . a sua responsabilidade pelos danos emergentes de acidentes de trabalho (b).

  8. Em consequência do acidente, o autor sofreu diversas lesões, «fractura da extremidade superior da tíbia direita» e recebeu instruções da ré Companhia de Seguros C... para ser tratado na Casa de Saúde de Coimbra, clínica pertença da ré B..., onde eram prestados os serviços médicos e cirúrgicos aos sinistrados daquela por força de contrato entre ambas existente, pelo qual esta se obrigava a prestar aos segurados da ré seguradora, mediante retribuição, os serviços de alojamento, enfermagem, disponibilidade do bloco operatório, medicamentos e sangue e esta se obrigava a pagar-lhos ©.

  9. O autor deu entrada na Casa de Saúde de Coimbra em 10 de Janeiro de 1989 e, aí, foi submetido, em 12 de Janeiro desse ano, a intervenção cirúrgica que consistiu em «osteossíntese dos pratos da tíbia e astrotomia». Teve alta em 3 de Fevereiro de 1989 (d).

  10. Em 12 de Janeiro de 1989 foi feita uma transfusão de sangue ao autor (500 cc).

  11. Em 15 de Novembro de 1989, o autor voltou a ser internado na clínica da ré B..., onde lhe foi instituído tratamento cirúrgico de osteotomia de correcção. Teve alta em 30 de Novembro de 1989 (g).

  12. Correu os seus termos pelo Tribunal de Trabalho de Coimbra uma acção, emergente de acidente de trabalho, contra a ré seguradora C... , tendo sido atribuído ao autor uma incapacidade permanente parcial de 0,6640 e declarado incapacitado para o trabalho habitual de pedreiro, por ter desenvolvido amioterapia da coxa com rigidez e artrose do joelho (h).

  13. Nesse processo essa ré seguradora foi condenada a pagar ao autor uma pensão vitalícia que, actualmente, é de 215 euros por mês (i).

  14. O exame da biopsia hepática, efectuado em Novembro de 2001, revelou, no relatório microscópico, que o autor apresentava: «fragmento de parênquima hepático, medindo 1,8 cm, observando-se lesões de cirrose variáveis, mas em geral espessos, com intensos infiltrados de células mononucledas alguns de disposição nodular e isolando grupos de células da periferia dos nódulos, com lesões de esteatose macrovacuolar de grau moderado. O diagnóstico histopatológico revelou: cirrose (pós hepatite C) com sinais de actividade (j).

  15. O autor foi sujeito a picadas de agulhas nos centros hospitalares (l).

  16. O autor, como preliminar desta acção, requereu o arrolamento de todos os documentos, consistindo em boletins, exames e registos clínicos relativos aos diagnósticos, tratamentos, intervenções cirúrgicas e transfusões de sangue efectuados pelo requerente na Casa de Saúde de Coimbra no período compreendido entre 10/01/1989 a 3/02/1989 e de 15/11/1989 a 30/11/1989 e ainda de todos os registos de aquisição...

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