Acórdão nº 16/10.9ZRCBR-A.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 12 de Abril de 2011

Magistrado ResponsávelBR
Data da Resolução12 de Abril de 2011
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

II – Fundamentação.

  1. Se considerarmos as conclusões da motivação do recurso, que, como é consabido, atento o disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, definem o seu objecto, as questões postas no mesmo, são 1) as da invocada insuficiência de indícios da prática, pelo arguido, de um dos crimes dos autos, maxime, o de lenocínio agravado, e, 2) da inverificação dos pressupostos susceptíveis de acobertar a medida de coacção máxima aplicada, qual seja a de prisão preventiva.

    Vejamos, então: 2. Como decorre do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, são elementos constitutivos do tipo do crime de lenocínio: [tipo objectivo] - Que o agente fomente, favoreça ou facilite o exercício por outra pessoa de prostituição; - Que o agente pratique tais condutas profissionalmente ou com intenção lucrativa. [tipo subjectivo] - O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, abarcando, naturalmente, todos os elementos do tipo objectivo.

    Crime que se transmudará para uma forma agravada, acaso, nomeadamente: - O agente use para o seu cometimento violência ou ameaça grave [n.º 2, al. a)]; - O agente o cometa aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima [n.º 2, al. d)].

    A actividade profissional a que alude o tipo objectivo relaciona-se directamente com uma perspectiva de habitualidade da conduta, com uma actividade permanente, enquanto a intenção lucrativa igualmente prevista no tipo, pode já verificar-se através de uma actividade pontual ou esporádica[1].

    Tal tipificação corresponde a uma evolução legislativa que urge mencionar, embora ao de leve, pois que dela se extrairão, insofismávelmente, os bens jurídicos aí acautelados.

    Assim: Com a entrada em vigor do Código Penal de 1982, operou-se a revogação da disposição legal incriminadora contida no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 44. 579, de 19 de Setembro de 1962, de acordo com a qual bastava que o agente “favorecesse” ou “de algum modo facilitasse” o exercício da prostituição para poder ser punido pela prática do crime de lenocínio.

    Não se exigia, então, como o passou a fazer o artigo 215.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal de 1982, que o agente, ao “fomentar, favorecer ou facilitar”, na linguagem do legislador de então, “a prática de actos contrários ao pudor ou à moralidade sexual” por qualquer pessoa, estivesse a explorar uma “situação de abandono ou extrema necessidade económica” em que tais pessoas se encontrassem.

    Esta orientação manteve-se na versão do Código Penal de 1995 que continuou a exigir, no seu artigo 170.º, n.º 1, para que de lenocínio se pudesse falar, que o agente fomentasse, favorecesse ou facilitasse “o exercício da prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, explorando situações de abandono ou de necessidade económica.” Porém, através da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, veio a ficar consagrada, de novo, a primitiva orientação, deixando de exigir-se, no tipo base, a verificação do elemento “explorando situações de abandono ou de necessidade económica”, alargando, assim, o âmbito da incriminação.

    A exigência da situação de exploração, passou a integrar uma das qualificativas do crime, nos termos do n.º 2 desse preceito.

    A Lei n.º 99/01, de 25 de Agosto, manteve intocado o artigo 170.º, n.º 1.

    Da mesma forma, a recente versão dada pela Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro, que alterou a numeração da norma, passando a constar do artigo 169.º, tendo o n.º 1 sofrido apenas alteração na redacção, com a supressão da expressão ”ou actos sexuais de relevo.” Esta evolução não foi isenta de controvérsia.

    Com efeito, se já quando o Código Penal – artigos 215.º, n.º 1, alínea b)/ versão de 1982 e 170.º, n.º 1/ versão de 1995 – exigia a verificação de situações “de abandono ou de necessidade económica”, o que pressupunha situações de “miséria e de exclusão social”, que no dizer de Figueiredo Dias, não justificaria a intervenção do Direito Penal, por se tratar de “de um problema social e de polícia”, o que conduzia à descriminalização, desde 1998, há mais quem defenda, que digno de tutela, é o comportamento tipificado no n.º 2 do artigo 170.º e que, então, estará descriminalizada a conduta prevista no n.º 1, pois que, como refere a Professora Anabela Rodrigues[2], “com esta incriminação o bem jurídico protegido, não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoa, persistindo aqui uma certa ideia de “defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade”, que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao novo enquadramento dos “crimes contra a forma que assumem os atentados contra a liberdade (…).” Nesta perspectiva seria contraditória a solução que vem desde 1998, resultando num alargamento da incriminação, ao eliminar a verificação do elemento “exploração de situações de abandono ou de necessidade económica.” Todavia, esta questão da conformidade com a Constituição da República Portuguesa do artigo 170.º, n.º 1, que pune o crime de lenocínio, reportado a actos de fomento, favorecimento ou facilitação de actos de prostituição de pessoas livres e auto-determinadas – tem sido, invariável e sucessivamente, afirmada, pelo Tribunal Constitucional sempre que foi chamado a pronunciar-se, distinguindo as questões de constitucionalidade de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre a norma e concluindo, depois de identificar o bem jurídico protegido pela norma – que visa proteger a liberdade e autonomia para a dignidade das pessoas que se prostituem – que o legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo criminal como o que tal norma prevê. De facto: Nos Acórdãos n.ºs 144/2004, 522 e 591/2007 decidiu-se não julgar aquela norma inconstitucional, por violação dos artigos 41.º, n.º 1 (liberdade de consciência), 47.º, n.º 1 (liberdade de profissão) e 18.º, n.º 2, da Constituição da República; No Acórdão n.º 196/2004, do mesmo Tribunal, chamado a debruçar-se sobre a alegada inconstitucionalidade material do artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal, decidiu que a mesma não violava os artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 47.º e 58.º, n.º 1, da Lei Fundamental; No Acórdão n.º 303/2004, mais uma vez se reiterou que a norma do artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal, na versão resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, não viola a Constituição da República Portuguesa, e, designadamente, não ofende os princípios enunciados no artigo 1.º e, nos Acórdãos n.ºs 170/2006 e 396/2007, decidiu que a norma contida no artigo 170.º, n.º 1 não violava o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República.

    Porque refere esclarecedoramente o pomo da discórdia, recordemos um trecho destas decisões do Tribunal Constitucional: “ (...) subjacente à norma do artigo 170.º/1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (...). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo «princípio» seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana.

    E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em D.R., I.ª Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991, a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I.ª Série, de 10 de Outubro de 1991). (...).” Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio [artigo 135.º do Código Penal] ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172.º, n.º 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.

    As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (note-se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja-se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são...

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