Acórdão nº 3896/2006-8 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 18 de Maio de 2006 (caso NULL)

Magistrado ResponsávelSALAZAR CASANOVA
Data da Resolução18 de Maio de 2006
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: 1.

Maria.[…] propôs no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa no dia 17-9-2003 acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumaríssimo contra […] Companhia de Seguros, SA […] a sua condenação no pagamento de € 3.396,27, valor dos prejuízos emergentes de acidente de viação ocorrido no dia 12-12-2001.

  1. Por decisão de 19-7-2005 o tribunal judicial considerou-se incompetente em razão da matéria considerando que a matéria em causa é da competência exclusiva dos julgados de paz face ao disposto no artigo 9.º/1,alínea h) da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho (doravante os artigos referidos sem indicação de lei são os da Lei n.º 78/2001) que estabeleceu a organização, funcionamento e competência dos julgados de paz e, consequentemente, absolveu os réus da instância.

  2. Desta decisão foi interposto recurso pelo Ministério Público, apoiado no parecer da Procuradora Geral da República nº 10/2005 de 21-4-2005, publicado no DR, II Série, nº 169 de 2 de Setembro de 2005, que constitui doutrina obrigatória para os magistrados do Ministério Público, segundo o qual " no actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz é optativa, relativamente aos tribunais judiciais, com competência territorial concorrente; o Estado-Administração pode ser parte em acções propostas nos julgados de paz, quer na sua veste de titular de direito privado, quer como ente público, quer como demandante, quer como demandado; a competência para o Ministério Público representar o Estado, nos termos do artigo 219.º da Constituição e dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público reporta-se aos tribunais estaduais, designadamente aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais; o Ministério Público não representa o Estado nos julgados de paz.

  3. O Ministério Público conclui a minuta de recurso apresentando as seguintes conclusões: - A natureza dos julgados de paz é alternativa e não exclusiva.

    - Não se encontrando o território nacional coberto pela instalação de julgados de paz, não faz sentido que esta jurisdição conheça, em exclusivo, de matérias apreciadas por tribunais judiciais em outras circunscrições territoriais.

    - Igualmente, o princípio de reserva de jurisdição, ou a disponibilidade das partes na possibilidade de submeterem os litígios materialmente judiciais nos tribunais judiciais, aponta para uma competência alternativa.

    - Acresce que a consagração da competência exclusiva expressa nos projectos de lei que antecederam a aprovação da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, não obteve consagração no texto vigente.

    - Favorecem, de resto, a tese da sua competência alternativa os artigos 41.º e 59.º, n.º3 da sobredita lei, não fazendo sentido que os tribunais judiciais, inicialmente incompetentes, adquiram competência quando sejam suscitados incidentes não admissíveis no processo dos julgados de paz ou seja requerida prova pericial.

    - Os artigos 66.º do C.P.C. e 211.º da C.R.P., invocados no texto da sentença recorrida, não apontam para a competência exclusiva da jurisdição de paz, pois o que está em causa é, justamente, a ausência de uma norma atributiva de competência a um tribunal judicial e outra atributiva de competência aos julgados paz.

    - O reconhecimento de que um tribunal judicial e um julgado de paz têm idêntica competência material não implica qualquer entorse aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diversas.

    - A prolongada inércia legislativa no sentido de clarificar a competência - alternativa/exclusiva - dos julgados de paz não pode deixar de apontar no sentido do entendimento perfilhado pelo Ministério Público.

    Apreciando: 5.

    A questão que está, pois, em causa no presente recurso é a de saber se os julgados de paz, no que respeita às acções referidas no artigo 9.º e cujo valor não exceda a alçada do tribunal de 1.ª instância - designadamente as acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual - dispõem de competência exclusiva ou, pelo contrário, a sua competência é alternativa relativamente à dos tribunais judiciais.

  4. Não subsiste dúvida, face ao texto constitucional, de que os julgados de paz são tribunais (artigo 209.º/2 da Constituição da República) que não estão integrados nem na categoria dos tribunais judiciais que tem como órgão superior da hierarquia o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 210.º da Constituição da República) nem na categoria dos tribunais administrativos e fiscais que tem por órgão superior o Supremo Tribunal Administrativo (artigo 212.º da Constituição da República).

  5. Os julgados de paz constituem, portanto, uma categoria de tribunais autónoma face a outras categorias ou ordens de tribunais, tal como sucede com o Tribunal Constitucional ou o Tribunal de Contas.

  6. A competência dos tribunais judiciais é residual no sentido em que " são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional" (artigo 66.º do C.P.C.).

  7. No que respeita à competência material dos tribunais afigura-se-nos imanente à lei o propósito de fixar um quadro em que a competência para a resolução dos litígios seja atribuída a um tribunal e apenas a um tribunal, percorrido que seja o caminho definidor traçado pela lei.

  8. Deseja-se naturalmente que um tal caminho seja fixado em termos acessíveis para que se evitem conflitos de jurisdição ou de competência, patologia processual que é quase sempre sinal de insuficiências ou de falta de clareza no plano substantivo.

  9. Não nos parece, portanto, que a lei, salvo expressão directa em contrário ou fundada razão justificativa, se oriente ou deseje a fixação de competências concorrentes ou alternativas.

  10. Talvez se possa afirmar que há um interesse público em que os mesmos litígios sejam julgados pelos mesmos tribunais, podendo essa identidade ser caracterizada mais ou menos amplamente, mas sempre de forma que uma tal concretização integre uma categoria abstracta de litígios; se tal não sucedesse, teríamos tribunais criados para a resolução de um litígio determinado.

  11. Por isso, quando ocorrem conflitos entre tribunais de categoria ou ordem diferentes, serão eles dirimidos pelos tribunais de conflitos a constituir (artigo 209.º/3 da Constituição): tais conflitos são de jurisdição porque se estabelecem entre tribunais de categoria ou ordem jurisdicional diversas.

  12. Se os conflitos se estabelecem entre tribunais da mesma ordem jurisdicional, que se atribuem ou negam reciprocamente competência para conhecer da mesma questão, então o conflito não é de jurisdição, mas de competência (artigo 115.º/2 do C.P.C.).

  13. A propósito desta questão, e abstraindo da arrumação dos tribunais que ao tempo se fazia em duas classes - tribunais comuns e tribunais especiais sendo, portanto, critério do artigo 66.º do C.P.C. atribuir aos tribunais comuns o que não fosse atribuível a jurisdição especial -, o Prof. Alberto dos Reis referia que " quando a lei cria e organiza um tribunal especial, tem o cuidado de delimitar a sua competência, isto é, de designar a massa de causas de que ele pode conhecer: essas, e só essas, ficam dentro do seu poder jurisdicional. Portanto, basta examinar com atenção a lei orgânica do tribunal para se verificar se uma certa causa está compreendida na zona da sua competência...Determinada a categoria do tribunal, o problema da competência está esgotado se há um único tribunal dessa categoria... Mas se há mais do que um tribunal da categoria fixada, a solução completa do problema de competência demanda ainda uma última averiguação: saber qual dos tribunais da referida categoria é competente para a causa...a averiguação consiste, afinal, em saber em que circunscrição territorial há-de correr a causa, em que distrito judicial, em que comarca, em que julgado municipal... As regras a aplicar para esta determinação são regras de competência em razão do território ou regras de competência...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT