Acórdão nº 5872/2004-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 08 de Julho de 2004 (caso NULL)

Magistrado ResponsávelJOÃO CARROLA
Data da Resolução08 de Julho de 2004
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I.

(P), arguido nos autos de inquérito n.º 1193/04.3 TDLSB do 5º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, preso preventivamente, veio interpor recurso para este Tribunal da Relação de Lisboa, do douto despacho proferido pela M.ma Juiz de Turno junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, de 24 de Abril de 2004, o qual determinou a medida de coacção de prisão preventiva, o que faz concluindo que: "1. Nenhum dos menores identificados nos autos apresentou queixa contra o arguido, pela prática dos crimes p. e p. pelos artigos 172° n° 1 e 2, n° 3 als a) e b) e 175° do Código Penal.

  1. O Ministério Público também não consignou no processo que os interesses das vítimas o legitimavam a desencadear o procedimento criminal.

  2. Estando em causa a legitimidade para o Ministério Público agir, desencadeando o processo criminal, entende-se que as condições para tal têm de estar reunidas, logo à partida.

  3. A não ser assim, podem conceber-se hipóteses e situações aberrantes, correndo-se por exemplo o risco de alguém ser constituído arguido e sujeito à mais gravosa das medidas de coacção - a prisão preventiva - e, no momento do encerramento do inquérito, o Ministério Público vir a entender que os interesses da vítima menor de 16 anos, afinal, não impunham o desencadeamento do processo, ordenando o seu arquivamento em conformidade.

  4. Pelo exposto, entende-se que o Ministério Público estava obrigado a fazer consignar nos autos na fase inicial do inquérito, logo após o conhecimento das condições pessoais das vítimas, que os interesses destas justificavam o desencadeamento do processo.

  5. Não o tendo feito, a sua falta de legitimidade para desencadear os presentes autos, determinou a inexistência de todos os actos processuais praticados neste inquérito.

  6. Não reconhecendo essa falta de legitimidade do Ministério Público para desencadear este processo e as gravosas consequências daí decorrentes, a Mma Juíza do tribunal a quo violou o disposto no artigo 178° n° 4 do Código Penal.

  7. O arguido (P) assumiu uma consciência crítica face aos actos sexuais que praticou com menores, avaliou a censurabilidade desses comportamentos e, em face da dificuldade de se autodeterminar sozinho perante essa avaliação, procurou apoio clínico para conseguir pôr termo à sua prática.

  8. Passou então a ser seguido pelo Dr. (A), subscritor do relatório que acompanha a presente motivação e, sob a sua orientação e o acompanhamento psicológico da Dr. (C), iniciou a terapêutica adequada ao seu tratamento: deixou imediatamente de contactar os jovens que conheceu no Parque Eduardo VII e com quem havia mantido contactos sexuais (as vítimas nestes autos); não voltou a frequentar essa zona de Lisboa; destruiu as fotografias que havia tirado aos menores que aí conhecera e que guardava em sua casa; iniciou uma medicação com Zoloft, anti depressivo redutor do apetite sexual.

  9. Apesar desse louvável projecto de recuperação que prosseguia, da impressionante consciência crítica com que encarava o seu comportamento anterior e da sua sincera e total confissão dos factos pelos quais estava indiciado, a Mma Juíza de Instrução Criminal que o ouviu, proferiu uma decisão reveladora de um profundo descrédito na regeneração da pessoa humana, na qual, em clara antecipação condenatória, concluiu que a única medida de coacção adequada era a prisão preventiva.

  10. E, ao fundamentar a sua decisão, a Magistrada teceu considerações que se reputam de extrema gravidade e que colidem, manifestamente, com os princípios basilares que informam o nosso Direito Penal e Processual Penal, designadamente a aposta na regeneração do agente evidenciada por normas como o artigo 30° n° 1 da Constituição (que proíbe a prisão perpétua) e a imperiosa necessidade de encarar a prisão preventiva como uma medida excepcional e uma ultima ratio, tutelada dessa forma pelo artigo 28° n° 2 da Constituição da República Portuguesa e também pelo artigo 202° no 1 do CPP que apenas tolera a sua aplicação, nos casos em que as outras medidas de coacção se revelarem insuficientes.

  11. Com efeito, na sua decisão a Mma Juíza de Instrução Criminal assume claramente estar convicta da impossibilidade de regeneração de um agente de crimes de abuso sexual de menores, ao afirmar que "a pedofilia como parece ser aceite medicamente tem uma natureza predominante de comportamento compulsivo, o que leva a recear que o arguido em liberdade prossiga na sua actividade criminosa" (cfr. decisão recorrida, sublinhado nosso).

  12. Tal convicção radica num preconceito face ao agente abusador de menores, claramente revelado nesta passagem da decisão recorrida, onde não se concebe a possibilidade de recuperação nos chamados casos de pedofilia.

  13. E essa oportunidade de permitir a regeneração terapêutica do arguido, era não só merecida por ele, como ao contrário do afirmado no douto despacho recorrido, comportava e ainda comporta uma boa probabilidade de sucesso, como comprova aliás o relatório clinico do Dr. (A) e da Dr. (C), conceituados especialistas que vinham, sob orientação daquele, acompanhando medicamente o arguido, e que se encontra junto aos autos.

  14. Sendo aliás esta uma patologia do foro psicológico e comportamental, o acompanhamento médico especializado, bem como a série de exames e estudos que lhe estão associados, são indispensáveis ao bom prosseguimento da terapêutica adequada e entretanto prescrita e já iniciada. Também neste aspecto o relatório referido é elucidativo e permite colocar esta problemática devida e correctamente centrada.

  15. Acresce ainda a opinião do também conceituado estudioso deste fenómeno, Dr. (R), do Departamento de psicologia da Universidade do ..., relativamente à absoluta necessidade de para além de punir, se tratar os indivíduos que padecem desta parafilia, conforme recentes declarações transcritas em artigo de 08/05/2004 no jornal "Público", em que se afirma: Punição de agressores sexuais sem tratamento " é a mesma coisa que nada" ".

  16. E também aí se cita a opinião do escutado especialista, conforme reproduz documento entretanto junto aos autos, quando afirma: " ...não se pode meter no mesmo saco diferentes tipos de agressores sexuais, nem tratar da mesma forma delinquentes, violadores ou agressores de crianças".

  17. Ora o arguido teve já desde há alguns meses uma atitude credora de confiança e merecedora de oportunidade, ainda que naturalmente vigiada.

  18. A prisão preventiva é uma medida de coacção e não uma pena, por isso não prossegue quaisquer finalidades punitivas.

  19. Consequentemente, a sua aplicação não pode reger-se por objectivos de prevenção penal - neste caso, a prevenção da prática de crimes de abuso sexual de menores por pedófilos, dada a natureza compulsiva do seu comportamento -, como se verifica na decisão recorrida.

  20. Tal como estabelece o artigo 193° do CPP, a aplicação da prisão preventiva, como de qualquer medida de coacção, rege-se por critérios de adequação e de proporcionalidade, apreciados em face do caso concreto.

  21. Determina também a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 28° n° 2, a natureza excepcional e subsidiária da prisão preventiva, impondo-se a aplicação de uma outra medida de coacção mais favorável, sempre que tal se afigure possível. Por seu turno, o artigo 18° n° 2 da Lei Fundamental determina que as restrições legais aos direitos, liberdades e garantias só podem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

  22. No caso sub judice, é manifesta a adequação de outras medidas de coacção, que não a prisão preventiva, afigurando-se a sua gravosidade desnecessária.

  23. A inédita assunção dos factos pelo arguido, quer na fase anterior ao conhecimento dos autos, quer perante a Mma juíza de Instrução Criminal, durante o seu interrogatório, bem como o seu meritório esforço de recuperação, atenuam claramente as exigências cautelares que, no presente caso, possam existir.

  24. Tal comportamento revela a forte determinação do arguido em manter uma conduta lícita, o que atenua fortemente o receio do mesmo prosseguir numa actividade criminosa que, tal como o arguido explicou no seu interrogatório, cessara desde o início do seu tratamento e, repita-se, por vontade própria do recorrente.

  25. Existiam, assim, fortes razões para a Mma Juíza que proferiu a decisão sub judice ter optado pela aplicação, ao arguido, de uma medida de coacção menos gravosa. Não o tendo feito, aquela Magistrada violou os artigos 30° n°1,18° n° 2 e 28° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 193° e 202° n° 1 do CPP.

  26. Foi por sua própria iniciativa que o arguido deixou de contactar as vítimas; foi por sua própria iniciativa que deixou de frequentar o Parque Eduardo VII, por ser o local onde as vítimas se prostituíam; e foi por sua própria iniciativa que procurou ajuda clínica para não mais voltar a estabelecer contactos sexuais com menores.

  27. Em face deste enquadramento, entende-se inexistir em absoluto o perigo invocado na decisão recorrida do arguido contactar as vítimas e assim prejudicar o decurso do inquérito, a recolha e a conservação da prova. Mas ainda que se entendesse que tal perigo existia, para o afastar sempre seria suficiente a aplicação da medida de coacção prevista no artigo 200°n°1 alínea d) do CPP, através da qual se poderia impor ao arguido a proibição de contactar os menores em causa, bem como de frequentar o Parque Eduardo VII. Não o tendo feito, a Mma Juíza violou, mais uma vez, os artigos 18° n° 2 e 28° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 193° e 202° n° 1 do CPP.

  28. Pelo facto do arguido ser assessor de um vereador na Câmara Municipal de ..., "com responsabilidades acrescidas no âmbito do Município", a Mma Juíza do tribunal recorrido entendeu que a sua libertação perturbaria a ordem e a tranquilidade públicas.

  29. Os actos pelos quais está indiciado o arguido em nada se relacionam...

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