Acórdão nº 5333/2003-5 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 17 de Fevereiro de 2004

Magistrado ResponsávelPULIDO GARCIA
Data da Resolução17 de Fevereiro de 2004
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Acordam, em conferência, na secção criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa: No Processo NUIPC 366/01. 5 TAMTJ, a 20-2-2003 (cfr.fls.385-399), o Exmº Juiz do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo proferiu decisão instrutória de não pronúncia da arguida (A) pelos factos constantes do libelo acusatório.

Por não se conformar com essa decisão, dela recorreu o MºPº, formulando, na motivação apresentada, as seguintes conclusões (cfr.fls.401-417; transcrevem-se): «1ª- Há indícios suficientes quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, com base neles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, princípio que também vale em sede de instrução ( art.ºs 283.º, n.º2 e 308.º, n.º 1, ambos do C.P.P.).

  1. - No despacho impugnado interpretou-se a norma constante do art.º 172.º da Lei Orgânica n.º1/01, de 14 de Agosto, no sentido de o tipo que a mesma define ser um crime de dano ou de perigo concreto, na medida em que se considerou ser necessário, para a consumação do mesmo, que a recorrida tivesse favorecido ou prejudicado um concorrente eleitoral.

  2. - Porém, fazendo uso das melhores regras da hermenêutica jurídica, devia ter interpretado tal norma no sentido de o referido elemento não ser constitutivo do tipo, sendo o mesmo um crime de perigo abstracto, perigo que é presumido " iuris et de iure" , bastando para a sua consumação, que fique provada a idoneidade da conduta da recorrida.

  3. - O conteúdo do boletim e, sobretudo, os respectivos títulos, bem como o do folheto, com funções apelativas são aptos a causarem impressão nos munícipes e a influenciarem a sua tendência de voto, pelo que os mesmos revelam preocupações eleitoralistas e de "marketing" político, do que resulta que a conduta da recorrida é idónea para o preenchimento dos crimes imputados.

  4. - Deste modo, sendo a recorrida simultaneamente a presidente da Câmara, não suspensa das suas funções, e candidata a novo mandato, a primeira quis favorecer a segunda, criando para a mesma uma vantagem em relação aos restantes candidatos.

  5. - Assim, porque se verificam indícios suficientes de que a recorrida cometeu os crimes que lhe foram imputados na acusação, o despacho recorrido fica desprovido de qualquer base legal que lhe sirva de suporte, pelo que o mesmo deve ser revogado e substituído por despacho de pronúncia, dando--se provimento ao recurso, com o que se fará a devida justiça.

» Admitido o recurso (fls.421), e efectuadas as necessárias notificações, foi apresentada resposta pela arguida (A), que conclui (cfr.fls.440-455; transcreve-se): « a) O presente recurso vem interposto do despacho de pronuncia proferida nos autos à margem referenciados; b) O meritíssimo Juiz a quo julgou não existirem indícios suficientes de que a arguida tenha cometido os factos que lhe são imputados na acusação, atendendo à prova que foi produzida na fase de Instrução; c) No entanto, considera o Recorrente que há indícios suficientes quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, com base neles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, principio que também vale em sede de instrução; d) Todavia, não assiste qualquer razão ao Recorrente porquanto resultou da prova produzida na fase de Instrução, não ter a arguida praticado quaisquer factos idóneos a preencher o tipo de crime; e) Alega o ora Recorrente que o artigo 172º da LEOAL deve ser interpretado no sentido de o tipo que a mesma norma define ser um crime de perigo abstracto.

f) Ora, salvo o devido respeito, não é essa a correcta interpretação a fazer dos preceitos legais aplicáveis; g) O tipo de crime previsto no artigo 172º da LEOAL é um tipo complexo, uma espécie de tipo "aberto", em que os elementos que fundamentam a ilicitude não estão totalmente determinados na norma incriminadora, de forma que, olhada isoladamente, em causa fica o próprio principio da legalidade.; h) O crime em questão está tipificado nos artigos 172º, 40º, 41º e 38º da LEOAL; i) O âmbito de autoria de autoria do crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade é estabelecido pela conjugação dos preceitos dos artigos 172º e 41º da LEOAL e é delimitado pelas entidades que estão legalmente obrigadas a observar esses deveres durante o processo eleitoral.

j) As condutas relevantes para o tipo de crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade são as condutas proibidas ou impostas pela norma contida do n.º1 do artigo 41º da LEOAL; k) A imposição da observância dos deveres de neutralidade e imparcialidade às entidades públicas, exigível desde a marcação das eleições, não é incompatível com a normal prossecução das suas funções; l) "O que o principio da neutralidade postula é que no cumprimento das suas competências, as entidades publicas devem, por um lado, adoptar uma posição de distanciamento em face dos interesses das diferentes forças politico-partidárias e, por outro lado, abster-se de toda a manifestação política que possa interferir no processo eleitoral." m) Com este tipo de crime, pretende-se prevenir um resultado de perigo - a alteração das condições de igualdade de todas as candidaturas-, como forma de evitar um resultado lesivo, não compreendido no tipo, que é a viciação do próprio processo eleitoral, pelo que os actos que de algum modo favoreçam ou prejudiquem uma candidatura em detrimento ou vantagem de outra serão condutas idóneas que coloquem efectivamente em perigo a posição de igualdade de que devem gozar todas as candidaturas no processo eleitoral, o que configura o crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade como um crime de perigo; n) A conduta tem que assumir uma gravidade susceptível de influenciar as condições de igualdade entre as diversas candidaturas.

o) Assim, só são censuráveis penalmente aquelas condutas mediante as quais se ponha irremediavelmente em causa a igualdade entre as candidaturas ou a liberdade e esclarecimento do voto, em termos que não possa já o respeito por esses princípios na própria campanha conduzir a uma situação de igualdade e equilíbrio; p) Ora, a publicação do suplemento e do comunicado não ultrapassam a actividade normal da presidente da Câmara - em especial a actividade de informação e de balanço do mandato que reconhecidamente os autarcas, não apenas podem, como devem desenvolver junto dos munícipes-, não assumindo idoneidade para poder pôr em perigo a igualdade entre as diversas candidaturas; q) Não estão, pois reunidos os dois requisitos principais para que se tenha violada a lei, a saber, titular do órgão de um ente público tem de estar no exercício das suas funções e tem de forma grosseira favorecer ou prejudicar um concorrente eleitoral; r) Acresce que, do conteúdo do suplemento em causa não se retira qualquer intenção eleitoralista ou de auto-promoção e de depreciação de candiadatos da oposição; s) Ora, só condutas com este animo e efeito são susceptíveis de fazer incorrer os seus sujeitos no crime de violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade, pelo que há que concluir, não apenas pela inidoneidade da conduta da arguida para o preenchimento do tipo de crime por que vem acusada, mas também pela inexistência do correspondente dolo, capaz de sustentar a tipicidade.

t) A intenção subjacente à contratação da publicação deste suplemento é a de levar a cabo um balanço, através da indicação de quais os objectivos que foram sendo alcançados ao longo de todo o mandato, mas sem que com isso se proceda a quaisquer juízos de valor. O objectivo da publicação deste suplemento era apenas proceder ao levantamento informativo e conclusivo sobre o que haviam sido as obras e as iniciativas levadas a cabo durante o mandato que estava a terminar e não laudar esse desempenho.

u) A publicação do referido suplemento durante o chamado período de pré-campanha eleitoral pela Presidente da Câmara, ora arguida, não constitui qualquer ilícito penal, nomeadamente por violação dos deveres de neutralidade ou imparcialidade. Como bem se compreende, só se poderá aferir da existência ou não da violação destes deveres pelo conteúdo do suplemento e por uma análise do mesmo.

v) Todavia, o conteúdo dos diversos suplementos tal como o que está em questão, não era da responsabilidade da Presidente da Câmara que só dele tomava conhecimento após a respectiva publicação, mas sim do director do Jornal e dos seus jornalistas encarregues da sua redacção.

w) Uma vez que a violação dos deveres de neutralidade e imparcialidade no tocante à revista não pode basear-se apenas na publicação da mesma enquanto decisão em si mesma, mas tem de assumir que há também intervenção da arguida na determinação do seu conteúdo, faltando-lhe a determinação de vontade da arguida no sentido de decidir sobre o conteúdo efectivo do suplemento, não há como ter por cometido o crime em causa.

x) Mas ainda que a responsabilidade pelo conteúdo do suplemento pudesse ser totalmente imputada à arguida, nesse conteúdo não se verificam actos idóneos à criação de um perigo efectivo para a posição de igualdade entre as diferentes candidaturas.

Pelo que, y) Não existem indícios suficientes de que a arguida tenha cometido os factos que lhe são imputados na acusação.

».

Remetidos os autos a esta Relação (fls.458), neste Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, profícua e minuciosamente, como é seu timbre, concluindo (cfr.fls.461-470) no sentido de o recurso merecer provimento, «...devendo, por isso ser determinada a substituição da douta decisão de não pronúncia por outra que pronuncie a arguida...

».

Tendo sido dado cumprimento ao consignado no artº 417º, nº 2, do C.P.P. (fls.471), foi apresentada resposta pela arguida a defender a manutenção do despacho recorrido.

Colhidos os necessários vistos, cumpre agora apreciar e decidir.

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