Acórdão nº 8877/2003-7 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 16 de Dezembro de 2003

Magistrado ResponsávelABRANTES GERALDES
Data da Resolução16 de Dezembro de 2003
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Agravo nº 8877-03-7ª Secção I - A , B, e C, intentaram contra D, E, F, e G procedimento cautelar de arrolamento na sequência do óbito de seu tio H.

Invocaram para o efeito a qualidade de herdeiros testamentários cujas expectativas foram prejudicadas pela outorga de actos do falecido que estão feridos de invalidade: o último testamento em que surgiu como principal beneficiária a requerida D, uma procuração irrevogável para venda de uma fracção autónoma do de cujus, a compra e venda de uma outra fracção autónoma e a doação do respectivo recheio. Quanto aos outros requeridos invocam que os mesmos são titulares de contas bancárias para onde foi transferido dinheiro que pertencia ao de cujus.

O arrolamento foi decretado sem audição prévia dos requeridos, tendo abarcado duas fracções autónomas e o recheio de uma delas, assim como os valores monetários depositados em diversas contas bancárias.

Os requeridos deduziram oposição onde negaram os factos alegados pelos requerentes, dizendo que os actos jurídicos impugnados resultaram da actuação livre e esclarecida do de cujus.

Produzida prova, foi revogada a decisão cautelar na parte respeitante às fracções autónomas e ao recheio e foi ordenado ainda o levantamento do arrolamento das contas bancárias tituladas exclusivamente pelos requeridos E, F e G.

No mais, foi reduzido o arrolamento das restantes contas bancárias ao montante máximo de 1.393.659 €.

Desta decisão agravaram os requerentes e os requeridos.

Os requeridos concluíram assim: (...) Os requerentes concluíram que: (...) Houve contra-alegações de ambas as partes.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Decidindo: 1. Da decisão do incidente de oposição agravaram tanto os requerentes como os requeridos. Mas enquanto os requerentes pretendem que se mantenha a primeira, que decretou o arrolamento, os requeridos defendem a sua revogação total e o consequente levantamento do arrolamento na parte que ainda persiste.

Porque ambas as partes suscitam, nos respectivos agravos, questões de facto e de direito, importará, em primeira linha, decidir as primeiras, e só depois apreciar ligadas à integração jurídica da factualidade que for considerada definitivamente assente.

  1. Matéria de facto: A - Agravo interposto pela requerida: 1. Consideram a requerida que é ilegal a inclusão da matéria de facto contida no § 29º, por violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes, assim como do princípio do dispositivo e da ratio que preside ao mecanismo da oposição, previsto no art. 388.° nº l, al. b), do CPC.

    Consignou o tribunal nesse ponto que "ao tempo do seu internamento no Hospital da CUF, "H" padecia de arterioesclerose generalizada". Dizem os requeridos que tal facto não foi alegado pelos requerentes e que, atenta a fundamentação do direito que estes aduziram para justificar o arrolamento, se trata de um facto essencial que, por isso, não poderia ser inserido na matéria de facto provada.

    1.1. A causa de pedir do arrolamento, como providência instrumental de uma acção principal, assenta na verificação de vícios de vontade do de cujus aquando da celebração do testamento e da outorga dos outros actos, sendo condensada, designadamente, nos qualificativos que constam dos arts. 187º e segs. do requerimento inicial: - falta de vontade ou do pleno uso da sua capacidade, coacção exercida pela requerida D, falta de compreensão do significado do acto, erro sobre o conteúdo do testamento ou divergência entre a vontade real e a vontade declarada.

    Estamos perante uma pretensão que emerge de uma complexa realidade que os requerentes procuraram traduzir em factos e conclusões fácticas, envolvendo diversos vícios, para que todos, ou alguns deles, se pudessem apurar com vista a justificar a pretensa violação das expectativas.

    Na primeira decisão - que decretou o arrolamento - foi considerado provado que: "Aos 95 anos, H encontrava-se velho, doente, quase cego e surdo, temeroso da doença e da morte, chantageado pela requerida - que não se coibia de, em ataques histéricos, ameaçar abandoná-lo, fazendo birras em que chegava a isolar-se no seu quarto dois dias seguidos - vítima de agressões verbais e violentas e soezes, tratado sem qualquer respeito, isolado das pessoas da sua confiança e em regime de sequestro, humilhado ....".

    Com maior proximidade relativamente ao testamento, foi ainda considerado provado que: - O falecido foi "hospitalizado, entre a vida e a morte, no Hospital da CUF" (87º), - onde lhe foram "detectados graves problemas de âmbito hemorrágico, sendo submetido a transfusões de sangue e medicação adequada" (88º), - e que, seis dias depois, malgrado a promessa de manter o anterior testamento, fez um novo, de conteúdo diferente, quando já estava "convalescente, exausto, praticamente cego, surdo e em que dificilmente se desloca" (91º).

    Ora, a mera comparação entre o que fora alegado e aquilo que foi considerado provado revela que o tribunal a quo, aquando da decisão inicial, não se convenceu de todos os factos invocados pelos requerentes, embora tenha assumido a prova de uma situação que considerou suficiente para justificar o direito reclamado. Tratou-se, porém, de um juízo formulado num momento em que a versão dos requerentes ainda não fora sujeita ao contraditório.

    Confrontado posteriormente com outros factos e meios de prova trazidos pelos requeridos que deduziram oposição ao arrolamento, o mesmo tribunal, ainda que por intermédio de outro juiz, procedeu a uma redução assinalável dos factos que anteriormente haviam sido considerados provados. Para além de outros factos periféricos referentes ao comportamento pregresso do falecido, foi considerado provado que: - "Nos últimos 3 anos da sua vida, H padecia de dificuldade de visão, ao ponto de necessitar de lupa para conseguir ler e necessitar que lhe preenchessem os cheques que assinava" (ponto 46º), - "entre 17 e 22-7-00 esteve sujeito a internamento no Hospital da CUF, devido a crise hemorrágica, tendo sido submetido a transfusões de sangue" (ponto 28º) - e "ao tempo do seu internamento ...

    padecia de arteriosclerose generalizada" (ponto 29º).

    De fora ficaram, nesta segunda etapa do procedimento cautelar, os factos referentes ao alegado "cerco" que a requerida D teria feito ao falecido (pontos 6º e segs.), a sua alegada actuação chantageadora (ponto 13º), o alegado estado de "dependência, obediência e amedrontamento totais" em que o falecido se encontraria (ponto 20º) ou o facto de aquando da outorga do testamento estar "exausto, surdo e dificilmente se deslocava" (ponto 24º).

    De tudo quanto a respeito das condições psíquicas do de cujus interessava para a sustentação da tese da invalidade do testamento e dos outros actos restou aquilo que o tribunal foi buscar à respectiva ficha clínica preenchida aquando do internamento hospitalar que fora junta pelos requerentes na 1ª fase, concluindo que "ao tempo do seu internamento no Hospital da CUF, H padecia de arterioesclerose generalizada".

    1.2. Vêem os requeridos nesta opção a violação dos princípios do dispositivo, contraditório e igualdade. Não cremos que possa aceitar-se tal conclusão.

    Como se disse, a assunção de tal facto foi feita a partir de um documento apresentado pelos requerentes para instruir o seu requerimento de arrolamento. Deste modo, só uma perspectiva formalista do processo civil, de todo desajustada aos tempos que correm, poderiam justificar a interposição de obstáculos a que o tribunal, com referência aos fundamentos da pretensão, aproveitasse factos resultantes de documentos apresentados com os articulados, no caso, o requerimento inicial, para integrar a causa de pedir.

    Ao invés, é corrente o entendimento, que a reforma processual apenas se limitou veio reforçar, que os documentos podem constituir uma extensão dos articulados, quer quando nestes se faz a remissão para o seu conteúdo, quer quando, como ocorre no caso, contêm elementos informativos que desempenham uma função instrumental relativamente ao núcleo central dos factos onde assenta a pretensão.

    [1] A afirmação impugnada pelos requeridos não traduz decerto um facto essencial. Tendo em conta a complexidade e a multiplicidade das causas de pedir invocadas, a prova do estado do de cujus na ocasião do seu internamento hospitalar, alguns dias antes do testamento, representa tão só um facto instrumental, podendo constituir um elemento que, conjugado com outros ou com as regras da experiência, permita extrair ou não uma determinada conclusão.

    Na linha do que já defendia Anselmo de Castro,[2] os factos instrumentais são aqueles que não pertencem à norma fundamentadora do direito, mas que podem indiciar os factos essenciais, sendo também por isso qualificados como factos indiciários ou factos probatórios.

    [3] São, na prática, aqueles que, perante a impossibilidade ou a dificuldade de se fazer prova directa de certos factos essenciais, permitem ao tribunal fundar razoavelmente presunções judiciais, como meios de formação da convicção e como instrumentos de realização do direito.

    As acções ou procedimentos em que se discutem determinados vícios dos negócios jurídicos como os ligados à vontade dos declarantes colocam frequentes dificuldades quanto à prova de factos que permitam enquadrar os pressupostos normativos de que depende a viabilidade das pretensões. Porque é difícil o apuramento dos factos essenciais, é a prova de factos circunstanciais que muitas vezes permite afirmar, com a probabilidade própria dos juízos judiciários, os factos que realmente importam à procedência das pretensões.

    No caso concreto, tendo em conta os vícios dos negócios jurídicos impugnados (incapacidade de entender o significado da declaração, erro entre o pretendido e o querido, etc.), os factos que eram de cariz "essencial", por traduzirem directamente a realidade abstractamente tutelada pelas normas jurídicas aplicáveis, foram os alegados no requerimento inicial, designadamente no art. 188º (segundo o qual o testador não teria "compreendido o que outorgou"...

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