Acórdão nº 0536416 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 23 de Fevereiro de 2006 (caso NULL)

Magistrado ResponsávelJOSÉ FERRAZ
Data da Resolução23 de Fevereiro de 2006
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação do Porto I - B....., viúva e com domicílio no lugar de ...., ...., Arouca, instaurou acção declarativa contra os réus, C..... e mulher D....., residentes no mesmo lugar, alegando que, em escritura de 18/02/1999, declarou doar aos réus o quinhão hereditário a que tinha direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu marido, falecido no dia 16/03/1998, da qual faziam parte um terreno lavradio e uma casa de habitação.

A autora limitou-se a estar presente na leitura da escritura de doação, sem discernir minimamente aquilo que se passava à sua volta e sem ter consciência de estar a fazer uma declaração negocial, pelo que agiu com falta de consciência da declaração.

Os réus comprometeram-se, na doação, a tratarem a doadora sã enquanto sã e doente enquanto doente.

A autora é deixada sozinha, abandonada pelos réus, que apenas se acercam dela para a maltratar, agredir física e verbalmente, e ameaçar de morte, sendo que padece de doença crónica, necessitando da ajuda constante de 3ª pessoa para satisfação das suas necessidades fisiológicas.

Os réus não cumprem os serviços que se obrigaram a prestar à autora.

Na escritura de doação está incluído o direito de habitação vitalício da casa que o seu falecido marido deixou à autora em testamento, direito de habitação intransmissível, do que resulta a nulidade do acto.

Conclui a pedir a procedência da acção e, por via dela, - seja reconhecida e declarada a anulação, por vício do consentimento, da doação que efectuou aos réus, ou - no caso de assim não se entender, seja a doação declarada nula, revogada ou resolvida em razão da sua natureza remuneratória e incumprimento das obrigações dos donatários, ou - se ainda assim não se entender, seja declarada a nulidade de tal doação por impossibilidade legal do acto e, - em qualquer caso, sejam os réus condenados a abrir mão dos bens doados e a entregá-los à autora, livres de pessoas e coisas.

Os RR contestaram. Não se trata de doação remuneratória, sempre cumpriram o encargo que onera a doação, que não é nula, pois que apenas foi doado o quinhão hereditário e não o direito de habitação que foi legado à autora.

Não há fundamento para a revogação da doação por ingratidão do donatário e, a existir fundamento, a acção caducou A autora quis efectivamente fazer a doação aos RR, carecendo de fundamento a sua pretensão.

Concluem a pedir a improcedência.

A autora respondeu pela improcedência das excepções invocadas pelos réus.

  1. Proferido despacho saneador, a julgar a instância regular, seguiu-se selecção da matéria de facto com a organização da base instrutória.

    A autora apresentou um articulado superveniente, em que alega, em síntese, que a partir de 01/10/2002, devido aos graves problemas de saúde, a viver só e abandonada, não tendo forças para satisfazer as suas necessidades básicas, foi internada num lar para terceira idade, a fim de poder ser tratada com respeito e dignidade, como acontece.

    Oportunamente, deve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção inteiramente improcedente e absolveu os réus dos pedidos contra eles formulados.

  2. Inconformada com a sentença, dela recorre a autora, tendo encerrado as alegações a concluir: "Primeira: O exame médico constante dos autos, atendendo ao rigor e recolha exaustiva e completa de elementos que presidiu à sua elaboração, à sua conclusão precisa e fundamentada e à percepção por perito médico especializado de que a Autora não terá decidido com clareza a doação ajuizada é suficiente para dar como provados os quesitos 5º), 6º) e 7º) da Base Instrutória.

    Segunda: Os depoimentos de duas testemunhas que levaram o tribunal a considerar abalada a conclusão do referido exame médico não são, nem de longe nem de perto, idóneos a produzir tal efeito.

    Terceira: Em primeiro lugar, porque as testemunhas em causa, sendo a notária que elaborou a escritura e o Advogado que a preparou e habilitou com os documentos necessários não estariam nunca em posição de reconhecer que a autora outorgou sem consciência da declaração negocial ou indicar qualquer facto de onde tal se pudesse minimamente concluir.

    Quarta: Também porque o testemunho do Advogado em causa foi efectuado em flagrante violação do segredo profissional, uma vez que este reconheceu que quando esteve no Notário estava como Advogado, a exercer funções de advogado e em patrocínio de ambas as partes, outorgantes na escritura e aqui Autora e Réus, o que implica a ilegalidade de tal prova testemunhal.

    Quinta: O facto de o referido Advogado também constar na escritura como abonador da identidade de um dos outorgantes não obsta ao que se deixa dito, nem implica que o Advogado por causa disso deixou de estar presente no acto nessa qualidade, uma vez que se encontrava a acompanhar o culminar do trabalho efectuado com vista à outorga daquela escritura.

    Sexta: A reapreciação da prova gravada incidentes sofre o referido testemunha do referido Advogado implica que o seu testemunho seja desconsiderado e assim confrontado com o exame médico não poderá abalar a conclusão deste.

    Sétima: O mesmo ocorre com o depoimento da outra testemunha que se considerou abalar este exame médico, uma vez que, como resulta da prova gravada a testemunha não se recorda, de todo, da escritura ajuizada.

    Oitava: O Tribunal para decidir as questões que lhe são postas não pode basear-se em generalidades e abstracções, como as que resultam de as testemunhas dizerem que agem sempre de uma determinada forma, se, para o caso concreto nada é dito que demonstre que se actuou naquele momento e ocasião dessa forma e que nenhuma recordação se tem do facto sob demonstração.

    Nona: Toda a prova produzida se encontra nos autos, pelo que incumbe ao Tribunal da Relação alterar a decisão sobre a matéria de facto nos termos expostos.

    Décima: De qualquer modo, o testemunho aqui reproduzido da referida Srª. Notária, permite abalar, esse sim, a conclusão de que ela se apercebeu do estado psicológico da autora, pois reconhece que não advinha se as pessoas entendem ou não a explicação que lhes é dada no acto da escritura.

    Décima-primeira: Mesmo que assim não fosse de entender, no confronto entre estes dois tipos de prova sempre há-de prevalecer a pericial, efectuada por médicos peritos em psicologia e psiquiatria, ante a impressão de leias e naturalmente desatentas testemunhas, como a Notária e o Advogado que não se poderiam aperceber do estado psicológico da autora no acto, nem saber se esta terá ou não decidido com clareza a doação ajuizada e se padecia ou não de forte perturbação.

    Décima-segunda: Não foram considerados no acervo de factos provados, e deveriam tê-lo sido os facto constantes do articulado superveniente oferecido pela autora, sendo certo que tais factos foram, por despacho transitado em julgado, considerados admitidos por acordo e a sua relevância é suficiente para a procedência da acção.

    Décima-terceira: Uma vez que estão em oposição expressa com a cláusula constantes da escritura ajuizada, a qual, se for considerada válida, inclui a obrigação de os donatários tratarem da doadora sã quando sã e doente quando doente, o que não fizeram, como está largamente demonstrado nos autos.

    Décima-quarta: Todos os elementos que vêm de referir-se desenham e demonstram a situação pungente de uma pessoa humana em estado de extrema precariedade que, por tudo isto, não tinha a menor noção ou consciência do alcance da doação.

    Décima-quinta: À autora assiste o direito de resolução da doação, assente que se encontre nestes auto que os donatários não cumpriram os encargos que para si resultam da escritura.

    Décima-sexta: Atendendo á situação de desamparo, solidão, doenças crónicas e graves e avançada idade da autora é manifesta a ingratidão dos donatários que nessa situação a deixaram, e nenhum serviço ou ajuda, por muito mínima que fosse, lhe prestaram ou prestam.

    Décima- sétima: Não tratando, por qualquer forma, da doadora, os réus não lograram provar que deixaram de cumprir as suas obrigações com justa causa, o que lhes competia, uma vez que a autora deixou provados os factos do incumprimento daqueles.

    Décima-oitava: Em última instância, e sem prescindir, deve ser reconhecida e declarada a nulidade parcial da doação que respeita á casa de habitação da autora, o que da norma imperativa que proíbe a doação do direito de habitação, bem como da norma que manda conhecer oficiosamente da nulidade.

    Décima-nona: Da leitura atenta do articulado superveniente (veja-se os factos constantes do nº 2) e de toda a prova produzida resulta que não fora a intervenção providencial de terceiros, e outra coisa não se pode concluir que não seja o abandono, desamparo, desprezo, míngua e desespero de uma pessoa com quase 90 anos, a autora destes autos, o que aos réus nada importou ou importa.

    Vigésima: Um comportamento que vê injustamente premiado por um Tribunal que admite a validade do contrato ajuizado para obrigar a autora, mas dele não tira as ilações quanto aquilo que os réus clausularam e que não cumpriram e para cujas obrigações que dele decorriam fizera tábua rasa.

    Vigésima: A douta decisão em apreço violou as normas legais citadas no corpo destas alegações, designadamente: CC, art.os 236º, 246º, 247º, 280º, 286º, 941º, 966º, 969º, 970º, 1488º, CPC, art.os 506º, 515º, 663º EOA, artº 81, nº 5 (artigo 87º na redacção actual)".

  3. Perante as conclusões das alegações, que delimitam o objecto do recurso (arts. 684º/3 e 690º/1 e 3 do CPC, são as seguintes as questões a decidir: - da reapreciação da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 5º, 6º e 7º; - da ampliação da matéria de facto; - se a autora, ao outorgar a escritura de doação, pela sua situação física e perturbação psicológica não teve a noção e consciência do alcance da declaração negocial correspondente à doação; - da resolução da doação por incumprimento dos encargos que para os réus resultam da escritura; - da revogação da doação por ingratidão dos donatários; - da...

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