Acórdão nº 0541858 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 14 de Dezembro de 2005
Magistrado Responsável | LUÍS GOMINHO |
Data da Resolução | 14 de Dezembro de 2005 |
Emissor | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
Acordam, em audiência, na Secção Criminal da Relação do Porto: I - Relatório: I - 1.) No Tribunal de Círculo de V. N. de Famalicão, foram os arguidos B......... e "C........, S. A." submetidos a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, pronunciados, o primeiro, da prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. à data dos factos, pelo art.º 24.º, n.ºs 1 e 5, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto - Lei n.º 20 - A/90, de 15 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto - Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, e actualmente, pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Fiscais, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, decorrendo a responsabilidade criminal da sociedade, das disposições conjugadas dos art.ºs 6.º, n.º 3, 7º e 24.º, n.ºs 1 e 4, do RJIFNA, e actualmente do disposto nos art.ºs 7.º, n.º 1, 8.º, n.ºs 3 e 5, e 105.º, n.º 1, do RGIT.
Proferido acórdão, decidiu-se para além do mais que aqui não releva: A) Condenar o arguido B........, como autor de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. nos arts. 30.º, n.º 2, do Código Penal, e 105.º, n.º 1, do RGIT, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo prazo de 5 anos a contar do trânsito desta decisão, na condição de o arguido pagar ao Estado o valor das prestações tributárias em dívida, com os acréscimos legais, nesse prazo de 5 anos, em prestações anuais de 1/5 do seu valor global, com vencimento no último dia útil de cada um desses períodos; B) Condenar a sociedade C........., S. A., no pagamento de multa de 350 dias, à taxa diária de 5 euros, sendo responsável pelo seu pagamento o arguido B........., nos termos do art. 8.º do RGIT.
I - 2.) Inconformado, recorre o arguido B........... para esta Relação, sustentando para o efeito as seguintes conclusões: 1.ª - O recorrente não se conforma com o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, que o condenou na pena de dois anos e seis meses de prisão, pela prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105., n.º 1, do RGIT. A execução da pena foi suspensa por cinco anos, com a condição de, no mesmo prazo, o arguido pagar as quantias devidas a título de impostos, com os acréscimos legais.
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- O Tribunal "a quo" não tratou de se inteirar da situação económica e financeira da empresa, no âmbito definido pelo objecto da acusação e da defesa do recorrente, traduzindo incorrectamente a matéria de facto provada e não provada.
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- Com a empresa (têxtil) tecnicamente falida, a preocupação do recorrente foi a de suportar o pagamento das despesas básicas da actividade de produção (salários, electricidade, etc), de forma a permitir a manutenção da laboração da sociedade.
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- A "C..........., S.A.", foi decretada falida pelo ....º Juízo Cível de V. N. de Famalicão, nos termos do Proc. ..../2002.
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- De acordo com o estipulado no art. 24.º do RGIFNA, comete o crime de abuso de confiança fiscal "quem se apropriar, total ou parcialmente de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário".
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- Na primeira instância entendeu-se que a mera "não entrega dos montantes recebidos" era bastante para o preenchimento do tipo legal, contudo, o crime de abuso de confiança fiscal, exige que o agente se aproprie da prestação tributária que lhe foi entregue.
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- A apropriação não se concretiza com a mera disposição injustificada da coisa ou com a sua não entrega, sendo necessário a existência do "dolo de apropriação", pois só este traduz a inversão do título da posse ou detenção, permitindo diferenciar o incumprimento, da conduta com relevância criminal.
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- Foi este o entendimento seguido nos Acórdãos da Relação do Porto de 19-5-04 (recurso 0411450) e de 15/12/2004 (recurso 0411036).
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- Para existir crime é necessária a prova da apropriação, mas também a intenção de apropriação, ou seja, que se provem factos de onde essa intenção se possa inferir com segurança.
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- Este aspecto essencial na delimitação do comportamento punível, apesar de constar da acusação, não foi dado como provado - Nesse sentido o n.º 9 dos factos não provados: 11.ª - Através de lei especial - a Lei Geral Tributária (LGT) - fixou-se que a responsabilidade dos membros dos órgãos sociais é subsidiária, dispondo estes de mecanismos processuais e de defesa que quer a lei penal quer a lei civil não contemplam.
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- Como tal e verificado o disposto nos art.ºs 20, n.º 1; 21.º; 22.º, n.ºs 2 e 3; 23.º, n.ºs 1 e 2; e 24.º da LGT, a imposição de pagamento como condição de suspensão da pena deve respeitar a natureza subsidiária da obrigação dos agentes que actuam em nome de outrem.
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- Assim, no incidente reversório (típico do processo de execução fiscal consequente ao não pagamento), sendo a responsabilidade dos gerentes ou administradores definida como subsidiária, dependerá da prova de que o património da sociedade se tornou insuficiente por culpa do obrigado subsidiário.
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- Nos termos da Lei Geral Tributária, para que o património do devedor subsidiário responda pela dívida tributária de outrem cujo património não é bastante (ou já não existe), é necessário que a administração tributária demonstre que agiu com culpa relativamente à insuficiência de bens do sujeito fiscal.
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- Aliás, no comércio jurídico privado os titulares dos órgãos sociais subordinam-se a regras específicas - as do art. 78.º do Código das Sociedades Comerciais - que só se compadecem com os critérios emergentes do risco próprio da actividade comercial e dos da sua gerência ou administração, mas, ainda assim, se exigindo a inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção dos credores sociais.
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- Os critérios a seguir para se demonstrar a responsabilidade daqueles titulares deverão corresponder, inexistindo o dolo, aos da situação da insolvência negligente - art. 228.º do Código Penal - ou seja, grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas e grave negligência no exercício do cargo ou, até, o não uso de providências de recuperação.
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- É que sendo devedores potenciais - e não se tendo, no processo crime alegado ou demonstrado os pressupostos de que depende a sua responsabilidade civil subsidiária - não podem ser como tal condenados.
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- Mais, relativamente aos juros também não é possível a condenação (ou a sua inclusão na condição de suspensão) pela simples razão de que, não tendo ainda sido aberto o incidente da reversão e a consequente notificação para oposição, o devedor subsidiário ainda não foi declarado revertido e não lhe foi dada a faculdade de pagar voluntariamente e sem juros - art. 23.º da LGT.
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- De facto, não faz qualquer sentido que se imponha uma condição sobre responsabilidade e quantias incertas e, deste modo, também aqui, a condição deve ressalvar a posterior reversão de responsabilidades e só, depois dela, se iniciando o período de suspensão.
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- A suspensão da pena é essencialmente ressocializadora, subordinando-se assim os deveres que a podem escoltar e - cfr. n.º 2 do art. 50.º do Código Penal - a razoabilidade exigida tem que se entender de acordo com as regras da responsabilidade e de critérios económicos quantitativos.
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- Quer o art. 11.º, n.º 7 do RGIFNA - pagamento do imposto e acréscimos legais - quer o art. 14.º, n.º 1, do RGIT - pagamento da prestação tributária e acréscimos legais - estabelecem condições reeducativas e não indemnizações ao lesado, tanto mais que o sujeito beneficiário da medida nem sequer é devedor efectivo de qualquer quantia, pelo menos antes do processo de reversão.
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- Temos assim que nas situações em que não esteja apurada a responsabilidade obrigacional do sujeito, não é razoável impor-lhe como condição um pagamento que só potencialmente lhe poderá vir a dizer respeito, sob pena de violação de princípios e direitos constitucionais, em especial os Princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da garantia e efectivação dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa e, em último termo, o direito à integridade (liberdade) - entre outros art.ºs 18.º, n.º 2, 25.º, 27.º, n.º 1, da CRP.
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- Existe, assim, incontestável inconstitucionalidade quando se impõe uma condição inadequada à situação económica do arguido, como sucede "in casu", pois previamente, importa que no próprio processo criminal ou pela via da reversão se determine a sua responsabilidade pelo pagamento das respectivas quantias.
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- Assim, a interpretação do art. 14.º do RGIT - no sentido de que é possível impor ao arguido, como no caso concreto aconteceu, e condicionar a sua liberdade ao pagamento dos impostos e juros em falta superiores à sua capacidade contributiva e financeira é inconstitucional, por constituírem uma forma de adiamento, da pena efectiva de prisão ao cidadão arguido que não possua capacidade económica e financeira de satisfação dessa condição.
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- Tal condição viola frontalmente o princípio da razoabilidade previsto no art. 51.º do C. Penal e o disposto no art. 27.º, n.º 1, da C. Rep. Portuguesa, por prática discriminatória dos cidadãos em razão da sua condição económica - nesse sentido também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, mais concretamente ao art. 1.º do 4.º Protocolo Adicional.
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- Nada obstaria a que, nos termos dos artigos 50.º e 51.º, do Código Penal, a suspensão da execução da pena ficasse subordinada ao pagamento da quantia que se considerasse proporcional às condições do arguido e adequada aos fins ao instituto da suspensão da execução da pena.
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- Haverá inconstitucionalidade quando se imponha uma condição inadequada à situação económica do arguido, reconhecido como devedor subsidiário activo.
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- O recorrente aufere um salário mensal ilíquido de 1.000 €.
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- Não foi determinada a composição do agregado familiar, mas acrescentou-se (65 dos factos provados) que o vive em casa própria...
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