Acórdão nº 3172/05.4 TALRA.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 17 de Junho de 2009

Magistrado ResponsávelFERNANDO VENTURA
Data da Resolução17 de Junho de 2009
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)
  1. Relatório [1] Nos presentes autos com o NUIPC 3172/05.4 TALRA do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Leiria, foi o arguido J... condenado pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artº 205º, nºs 1 e 4 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, e de outro crime de abuso de confiança, agora p. e p. pelo artº 205º, nºs 1 e 4, al. a) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. Em cúmulo dessas duas penas, foi condenado na pena unitária de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. Mais foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado contra o arguido pela demandante Zurich – Companhia de Seguros, S.A. e condenado este a pagar àquela a quantia de €7.814, 54 (sete mil, oitocentos e catorze euros e cinquenta e quatro cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação e até integral pagamento.

    [2] O arguido não se conformou com essa condenação e interpôs recurso, circunscrito à matéria de Direito, pedindo a sua absolvição. Extraiu da motivação as seguintes conclusões: 1. O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de abuso de confiança p. e p. pelo art ° 205, n.° 1 e 4, alínea a) do Código Penal na pena de dois anos e seis meses de prisão e um ano e seis meses de prisão respectivamente.

    1. Em cúmulo jurídico o arguido foi condenado na pena única de três anos de prisão suspensa pelo período de três anos.

    2. O arguido não praticou os crimes pelos quais foi condenado.

    3. Resulta da matéria de facto provada a existência de uma relação contratual de mediação de seguros entre o arguido e a Zurich – Companhia de Seguros, S.A.

    4. No âmbito de tal contrato, cabia ao arguido, além do mais angariar contratos de seguro encaminhando as respectivas propostas subscritas pelos respectivos tomadores para a Zurich, SA, e cobrar os prémios de seguros contra a entrega dos respectivos recibos que a Zurich emitia e lhe confiava.

    5. Após a cobrança dos prémios dos seguros, em regra aquando das prestações de contas, o arguido procedia à entrega dos valores cobrados à Zurich SA, depois de deduzidas as comissões a que, nos termos do aludido contrato de mediação, tinha direito.

    6. E assim procedeu o arguido.

    7. O arguido prestou contas e emitiu cheques para pagamento dos saldos devidos.

    8. Dos factos provados não resulta com exactidão quais os valores em causa, quando foram apresentados a pagamento os cheques e quando foram devolvidos.

    9. Em face da matéria de factos provada, apenas nos é possível concluir que a Zurich SA tem um crédito sobre o recorrente.

    10. Esse direito de crédito que surge do desenvolvimento normal da relação contratual entre a seguradora e o seu mediador não pode ser considerada como coisa móvel, como elemento típico do crime de abuso de confiança.

    11. Como bem refere o Prof. Jorge de Figueiredo Dias in Crime Contra o Património (Art. 205 - Abuso de Confiança) "Créditos e quaisquer outros direitos não sendo coisas nem em sentido material nem em sentido jurídico, não podem constituir objecto do crime de abuso de confiança; o mais que poderá é a sua disposição danosa constituir crime de infidelidade".

    12. Por outro lado, atentando no teor do Dec-Lei 388/91 que regula a actividade de mediação do seguros, a violação dos deveres do mediador de seguro nunca pode ser punida como crime mas apenas e só como contra-ordenação.

    13. Tudo para concluir que o arguido não praticou os crimes de abuso de confiança.

    14. Ao decidir pela condenação do arguido, o Tribunal violou o disposto no Art. 205 n.° 1 e 4 alínea a) do Código Penal.

    [3] Respondeu o magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo, no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso, avançando para tanto com razões que sintetiza da seguinte forma: I) Da matéria de facto apurada consta que o arguido recebeu de terceiros, clientes da seguradora "Zurich", quantias em dinheiro, pelos prémios de seguro cobrados e que deveria ter entregue a esta; II) Tais valores estão concretizados na matéria de facto dada assente pelo tribunal a quo; III) Ao não proceder à entrega dos prémios de seguro que cobrava aos clientes da seguradora lesada, o arguido apoderou-se indevidamente de tais quantias monetárias, porquanto, embora tivesse um contrato de mediação com aquela, não estava autorizado, quer por via dessa relação contratual, - quer pela própria lesada, a reter em seu beneficio tais quantias; IV) A sua conduta preenche o crime de abuso de confiança p. e p. no art.205° do C.Penal, crime este agravado nos termos do n°4 al. a), face aos valores em causa.

    [4] Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando os argumentos expostos pelo Ministério Público na instância. Considera igualmente que o recurso não merece provimento.

    [5] Cumprido o disposto no nº2 do artº 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.

    [6] O arguido dirigiu aos autos exposição, sustentando que foi «condenado por dívidas».

    [7] Foram colhidos os vistos e procedeu-se a conferência.

  2. Fundamentação 2.1. Delimitação do objecto do recurso [8] É pacífica a doutrina e jurisprudência Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.

    no sentido de que o âmbito do recurso delimita-se face às conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso Cfr., por exemplo, art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.

    .

    [9] O presente recurso versa, como se disse, apenas matéria de direito e centra-se na discordância quanto à tipicidade da conduta provada, designadamente quanto ao cometimento dos dois crimes de abuso de confiança pelos quais foi o arguido condenado.

    2.2. Da decisão recorrida [10] A primeira abordagem à questão colocada prende-se com a matéria provada, decisão que o arguido não impugna e em relação à qual não se vislumbra qualquer vício. Os factos dados como provados são os seguintes:

    1. FACTOS PROVADOS DA ACUSAÇÃO: 1) No início de Maio de 1997, o arguido J... celebrou um contrato através do qual se tomou mediador de seguros da Metrópole Seguros, a qual mais tarde foi incorporada na Zurich, Companhia de Seguros, S.A.

      2) No âmbito desse contrato cabia-lhe, além do mais, angariar contratos de seguros, encaminhando as respectivas propostas subscritas pelos respectivos tomadores para a Zurich, S.A., e cobrar prémios de seguros contra a entrega dos respectivos recibos que a Zurich, S.A., emitia e lhe confiava.

      3) Após a cobrança dos prémios dos seguros, em regra aquando das prestações de contas, o arguido procedia à entrega dos valores cobrados à Zurich, S.A., depois de deduzidas as comissões a que, nos termos do aludido contrato de mediação, tinha direito.

      4) No âmbito da aludida relação contratual, no ano 2000, o arguido recebeu da Zurich, S.A., os seguintes recibos relativos a prémios de seguros relativamente aos quais tinha o direito de, após a respectiva cobrança, ficar com comissões, tudo com a seguir se indica: N° RECIBO TOMADOR DO SEGURO VALOR COMISSÃO 1 003676808 80.485$00 5.963$00 2 003710860 18.792$00 1.376$00 3 003710911 9.417$00 661$00 4 003711862 44.115$00 3.261$00 5 003715719 20.966$00...

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