Acórdão nº 85.04.0TAGVA.C1. de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 04 de Fevereiro de 2009

Magistrado ResponsávelDR. FERNANDO VENTURA
Data da Resolução04 de Fevereiro de 2009
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)
  1. Relatório Por sentença proferida em 14/07/2008 no processo com o NUIPC 85.04.0TAGVA do Tribunal Judicial de Gouveia, foi o arguido ... condenado pela prática de um crime de abuso de confiança agravado p. e p. pelo artº 205º, nºs 1 e 2, al. a), com referência ao artº 202º, al. a) do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros); de quatro crimes de abuso de confiança p. e p. pelo artº 205º, nº1, do CP, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros) por cada um; e de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo artº 366º, nº1, do CP, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros). Em cúmulo dessas penas, foi o arguido condenado na pena única de 520 (quinhentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de €7,00 (sete euros). Foi o arguido ainda absolvido da prática de três crimes de abuso de confiança. Por seu turno, o pedido de indemnização civil apresentado pela demandante ... foi julgado parcialmente procedente e o arguido/demandado ... condenado a pagar àquela a quantia de €10.295,13 (dez mil, duzentos e noventa e cinco euros e treze cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a notificação para contestar.

Inconformado, o arguido apresentou recurso, extraindo das motivações a seguinte síntese conclusiva [[i]]: 1ª - O recorrente foi sócio gerente da assistente ..., desde 1996, data da sua constituição, e deixou de o ser em 10/08/2004, data em que, por escritura pública, cedeu a sua quota correspondente a 75% do capital a ...e outra, pelo preço, efectivamente acordado e pago, de 65.000 €.

2ª - Tal escritura foi precedida pela assinatura de um contrato promessa de cessão de quota de 27/03/2004, com assinatura reconhecida, no qual se fixou: As obrigações recíprocas de ceder e adquirir, pelo preço referido, mediante a entrega de sinal de 10.000€.

A obrigação e direito do cedente, ora arguido, em manter a gerência até à data da cessão.

A obrigação do promitente cessionário ... de substituir o arguido nas suas responsabilidades pelas garantias prestadas junto da C.G.D., de forma a que o arguido delas ficasse liberto.

A obrigação do outro sócio não cedente ..., que se obrigou a não preferir na cessão, e nada opor ao negócio.

3ª - O recorrente, era credor da sociedade, em montantes não concretamente apurados, resultando o seu crédito, em resumo, de um ano de remunerações de gerência (950 € por mês), pagamentos por ele feitos à sua custa de dívidas da sociedade de valor não apurado e a entrega de um automóvel seu à mesma.

4ª - À data dos aludidos contratos, a sociedade assistente tinha débitos e créditos, estes últimos por fornecimentos aos clientes, com pagamentos em atraso, e entre aqueles, ao Senhor ..., colaborador na empresa, no valor correspondente a um ano de remunerações (4.800 €) e aos empréstimos que o mesmo havia feito à empresa, em momentos de dificuldades de tesouraria, no valor global de 26.700 C.

5ª - Em condições e momento não concretamente apurados, o arguido assinou a declaração de fls. 1404, donde consta a data de 04/07/2004, da qual consta que "assume a responsabilidade de pagamento do empréstimo de 26.700 € de ... à ...".

6ª - O...era cunhado do arguido e, por isso, com a saída do seu cunhado da sociedade, iria sair também.

7ª - No período que decorreu entre 23/07/2004 e 10/08/2007, o arguido no exercício das suas funções, como gerente praticamente único (o outro funcionava como vendedor) da sociedade, procedeu à cobrança de alguns créditos junto dos clientes, e procedeu ao pagamento de dívidas e encargos da sociedade.

8ª - Assim, recebeu para a empresa, pelo menos as quantias descriminadas nos pontos 15 (507 €), 17 (861 €), 19 (4,491,13 €), 20 (1.000 €), 24 (1.1 10 €), 28 (2.000 €), 29 (1.000 €), 33 (754 €), 37 (1000 E) e entregou aos respectivos devedores os respectivos recibos.

9ª -- Desses valores referidos nos pontos 15, 17 e 24, no valor global de 2.478€, o arguido destinou-os a si próprio, para amortização (parcial) do seu crédito e as restantes no valor global de 10.285,13 €, entregou-as ao credor ..., também para amortização do respectivo crédito.

10ª - Por todos esses recebimentos, acima enumerados, foi o arguido acusado de outros tantos - nada menos que 8 - crimes de abuso de confiança, considerando-se, porém, agravado, devido ao valor, o recebimento e entrega ao credor A.M.L. no mesmo momento, das duas quantias referidas nos pontos 19 e 20 da sentença, no valor global de 5.491,13€.

11ª - A sentença recorrida absolveu o arguido, no que respeita às quantias que recebeu e integrou ao seu próprio património (pontos 16, 17 e 24) com o fundamento de que subsistiram dívidas (que aproveitaram o arguido) quanto à legitimidade ou ilegitimidade da apropriação dessas quantias (fls. 21 da sentença), sendo que o argumento do arguido de que lhe eram devidos valores em atraso, foi confirmado pelo menos pelo outro sócio (Eduardo) e pela testemunha ... - ver fls. 21 da sentença.

12ª - Já assim não concluiu, no que respeita às quantias entregues ao credor ..., condenando, por isso, o arguido na prática de cinco crimes de abuso de confiança (um deles agravado) e a indemnizar a assistente na quantia de 10.285,13€ que, em nome da sociedade, entregou ao referido credor.

Ora, 13ª - Considera o recorrente, que as duas situações são iguais e devem ter tratamento igual, sendo, pelo menos no plano ético, mais censurável (se censura fosse devida) o pagamento a si próprio, de que o pagamento a terceiros.

14ª - Para fundamentar a condenação, a sentença recorrida interpretou a declaração de fls. 1404 (referida na conclusão 5ª) assinada pelo arguido, no sentido que este se obrigara pessoalmente a pagar ao A.M.L. a divida da sociedade para com este, e como tal, não podia nem devia ter pago com dinheiro da empresa.

15ª - Tal interpretação - no sentido da obrigação pessoal, à sua custa, com isenção da responsabilidade da devedora, é salvo o devido respeito, indevida, imoral, ilegal e abusiva, uma vez que foi feita à revelia das normas do direito cível relativo às obrigações e de integração e interpretação dos negócios jurídicos.

16ª - A declaração foi subscrita em data e condições não esclarecidas, não havendo qualquer prova objectiva sobre as intenções ou motivações que a determinaram, pelo que todas as interpretações são possíveis.

17ª - Ao assumir tal obrigação de pagar, o arguido fê-lo na sua qualidade de gerente, responsável pela gestão, e, por isso, assumiu um compromisso de, no exercício dessa função, providenciar a cobrança de créditos da sociedade e obrigar-se a pagar ao referido credor, em vez de deixar esse encargo para a nova gerência.

18ª - Do texto não consta a expressão pessoal, e muito menos, a expressão "pessoal, à sua custa exclusiva".

19ª - Quer o arguido, quer o credor, quer o gerente da C.G.D. - ... (que acompanhou todas as negociações da cessão de quotas), foram elucidativos e peremptórios, quanto à interpretação de tal declaração, no sentido de que o arguido assumiu, como gerente, a especial obrigação da sociedade em dar preferência a este credor, o que se julgava legal e eticamente correcto, dado que havia ajudado a empresa em momento de crise e convinha a todos que ele saísse da empresa, com a sua situação, resolvida, evitando problemas à nova gerência.

20ª - Problemas que vieram a concretizar-se com a propositura pelo credor da acção sumária n" 230/OS para cobrança do seu crédito remanescente (deduzido que foi este pagamento de cerca de 10.285 €).

2lª - Podia e devia o julgador, nos termos do artigo 31 do C.P., proceder à verdadeira interpretação e alcance do sentido da declaração em causa, com base nos critérios dos artigos 220 e 221 do C. C., que lhe impunha a indagação da vontade real ou presumida das partes, e em última análise em caso de dívida, pela pesquisa do maior equilíbrio da prestação como impõe o art. 237.

Ora, 22ª - Não seria justo nem equitativo, que o arguido, tendo acordado receber o preço líquido de 65.000 € pela cessão da sua quota, viesse, afinal, ver deduzidas nesse preço quantias consideráveis que ele próprio não devia, deduções essas que anulariam ou reduziriam o valor real do preço para valores completamente diferentes do acordado, o que tornaria inviável a satisfação dos compromissos assumidos na aquisição de um café na zona da Amadora, pelo valor de 75.000,00€ (ver declarações de Raul - CGD e A.M.L. - cassete n.° 3 A e B e cassete 4 lado A).

23ª - Se o arguido quisesse de facto, assumir para si (e sua esposa) o encargo de pagar tal divida à sociedade, além de o declarar de forma expressa, literal e sem margem para dúvida, estaríamos na figura da transmissão de dívidas, prevista no artigo 595 do C.C.

Ora, 24ª - Para que essa transmissão se operasse e fosse válida, seria necessário o acordo expresso do credor, sem o qual a exoneração do primitivo devedor se não verificava - art. 595 n.° 1 a) e 2 do C.C.

Assim, 25ª - Mesmo que o arguido chamasse a si tal encargo, tal não poderia libertar a sociedade da divida que era sua, razão pela qual, ao pagar, satisfez compromisso e dívidas próprias dela (sociedade), não podendo considerar-se lesado.

Por outro lado, 26ª - A responsabilização unilateral de alguém pela divida de terceiro, não significa a assunção de obrigação principal, podendo configurar-se a mera prestação de fiança.

27ª - Fosse como gerente, fosse como fiador, a verdade é que a assinatura de tal declaração só poderia relevar em sede de obrigações civis, onde sempre haveria lugar à discussão prévia sobre a sua emissão de forma livre, séria e sem erro, dolo ou coacção.

28ª - Ciente dessa eventual responsabilização que pudesse vir a ser-lhe assacada, na hipótese, mais que provável, de não conseguir obter na empresa os meios de pagamento suficiente, para cumprir tal compromisso, e porque também estava confrontado com violações contratuais anunciadas pela outra parte, o arguido apôs uma assinatura diferente da habitual (usada no Bilhete de Identidade).

29ª -...

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